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Read Ebook: As Farpas: Chronica Mensal da Politica das Letras e dos Costumes (1882-11/12) by Ortig O Ramalho Editor Queir S E A De Editor

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Ebook has 278 lines and 20335 words, and 6 pages

E?A DE QUEIROZ--RAMALHO ORTIG?O

AS FARPAS

DA POLITICA, DAS LETRAS E DOS COSTUMES

QUARTA SERIE N.? 2

NOVEMBRO A DEZEMBRO 1882

Ironia, verdadeira liberdade! ?s tu que me livras da ambi??o do poder, da escravid?o dos partidos da venera??o da rotina, do pedantismo das sciencias, da admira??o das grandes personagens, das mystifica??es da politica, do fanatismo dos reformadores, da supersti??o d'este grande universo, e da adora??o de mim mesmo.

P.J. PROUDHON.

SUMMARIO

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Tal ?, resumidamente exposta, a commoda maneira de votar por meio da qual n?o s? o congresso catholico, reunido recentemente em Lisboa, mas muitos dos concilios ecclesiasticos que precederam este, se mettem de gorra parlamentar com os legisladores do ceu e constatam a approva??o da divindade ?s delibera??es tomadas pelos clerigos. Para esses cavalheiros,--papas, bispos, conegos, simples padres d'enterro ou sacrist?es--Deus ? absolutamente a mesma coisa que ? para o snr Fontes a sua maioria regeneradora, o que quer dizer: uma entidade encarregada de, assistir ? apresenta??o dos decretos e de dar o sim.

Nos serm?es de penitencia das nossas villas e aldeias o truque ? o mesmo que nos concilios, mas refor?ado com um cordel.

O orador sacro, encarregado pela remunera??o de 30 em dinheiro e um prato de especiones com vinho fino, de refrescar para commodidade das almas em cada uma das domingas da quaresma os ardores do purgatorio, irrigando de eloquencia e de latinidade esse recinto de clarifica??o espiritual, come?a por p?r Deus no throno do altar mor, sob a figura do Senhor dos Passos escondido atraz de uma cortina roxa, e dirige-se em seguida para a cadeira da verdade, acompanhado de uma ponta do barbante com que se ha de puxar a cortina. No final da predica, ? perora??o, o ecclesiastico, depois de haver enxugado a um dos len?os estendidos sobre o parapeito do pulpito os 30 de transpira??o escorrida pela fronte e pela regi?o cervical, pega no cordel, volta-se para a cortina, faz uma venia e diz:

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E por meio da bem conhecida e sempre efficaz figura de rhetorica intitulada obsecra??o,--um dos mais arrojados e vehementes de todos os tropos,--o orador, dirigindo-se sempre ? cortina, com bola de m?o para a lacrimosidade dos fieis, faz sentir a estes por tabella que ? mister que elles solucem durante alguns minutos para que Deus lhes appare?a, e lhes perdoe. Os fieis ent?o desatam em suspiros de corrente pranto, e o ecclesiastico, acabando emfim por lhes dar Deus de presente, cae elle mesmo prostrado de commo??o e de espanto na borda do pulpito, como se nunca em sua vida lhe houvesse apparecido um t?o portentoso milagre como esse de se correr a mesma cortina que occulta a imagem do Senhor dos Passos, a que elle tem por officio puxar os cordeis em todas as quaresmas, ? raz?o de trinta e seis tost?es por tarde, al?m do beberete.

Nos congressos dispensam de ordinario o barbante corroborativo da oratoria sacra.

Apenas nomeada a mesa que tem de presidir aos debates, os clerigos persignam-se, abancam, p?em deante de si os rap?s, e passam desde logo a redigir a acta, dando como presente, entre as pessoas do clero, a do divino Espirito Santo, representado sob a f?rma de volatil symbolico e para este effeito invisivel.

Emquanto a fazer approvar pela divindade dada como presente na acta, tudo aquillo que elles se lembram de resolver em commum, consideram os clerigos--e mui judiciosamente segundo se nos affigura--que ? inutil estar a puxar-lhe por guitas, tendo com Deus a mesma massada que se tem com as marionettes.

N'esse presupposto o que os padres decidiram foi o seguinte:

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Com o qu?, d?o a palavra aos snrs membros que tenham que prop?r coisas para approvar.

Ora Deus, na sua qualidade de ser supremamente sabio, segue, como ? notorio, o systema habitual de n?o se manifestar nunca, quer seja para approvar, quer seja para desapprovar aquillo que um maior ou menor numero de padres, reunidos para esse effeito, determinem expor-lhe.

? claro que lhe n?o faltava agora mais nada, ao grande bom Deus, sen?o sahir de toda a parte, onde dizem que est?, para vir ali assim ? capella do Marquez de Castello Melhor, ou a qualquer outra, estabelecer dialogo com o Padre Viegas ou com o Padre Garcia Diniz, para o fim de os cumprimentar ou de os mandar ? fava pelos seus discursos!

Succede por tanto que de todas as vezes que alguns sacerdotes, em folga por falta de missas ou de enterramentos, se agregam a alguns seculares mordidos pelo bicho carpinteiro do z?lo, e decidem juntos decretar mais fervor ? devo??o das massas afim de que estas mandem dizer mais missas ou se fa?am enterrar mais vezes, Deus, misericordioso e benigno, sorri de indifferen?a ineffavel nas profundidades immaculadas do azul e deixa o clero decretar, exactamente com a mesma longanimidade com que deixa a herva crescer.

N?o affirmaremos por?m em absoluto que esta enorme frescata de chinquilho, esta sem-cerimonia de bisca emparceirada com o Eterno pelos sacerdotes, n?o possa uma ou outra vez offerecer alguns ligeiros perigos, apertando-se de mais com o fiado.

Toda a familiaridade tem limites. Deus de quando em quando se pronuncia, posto que indirectamente, no sentido de recordar essa discreta maxima ?quelles religiosos que abusam, dando-se ares de privar ainda mais com o ceu do que privam com o proprio botequim do Martinho.

Ainda ha pouco no parlamento hispanhol se deu um facto proprio para provocar em nosso espirito amargas conjecturas sobre os inconvenientes de nos tornarmos nojosos ? for?a de sermos nimiamente prolixos em nossas intimidades com o Divino.

? de saber que o augusto pretendente D. Carlos, depois de haver consumido nas roletas do exilio, com o bello sexo extrangeiro e em devo??es castelhanas, os bens da sua cor?a, se achou reduzido ao mais invejavel estado de pureza christ?, n?o tendo de seu sen?o facturas de fornecedores que pagar, a ben??o apostolica de Sua Santidade e o direito divino.

Para sustentar esse direilo nas c?rtes da na??o hispanhola havia um deputado especialmente incumbido de narrar ? Peninsula tudo aquillo que Deus continuava a fazer pelo mui catholico principe D. Carlos, desde que D. Carlos, com a sua for?a desarmada e posta em penhor n'um banco de Londres, deixara de fazer por Deus coisa que se visse suspensa por corda no espa?o,

Pois bem, o que ultimamente succedeu foi que: o deputado alludido, ao principiar a usar da palavra para mais uma vez introduzir a divindade n'uma falla aos de Castella, cahiu subitamente morto.

Os anjos haviam-o chamado ?s alturas estendendo-lhe do empyreo o ascensor de Jacob a que na terra damos o nome vulgar mas expressivo de apoplexia.

Acontecem d'estas ?s vezes!

Os fieis, a poder de mandarem os philosophos ao diabo, arriscam-se um pouco a acabar como o hispanhol, fulminados repentinamente pelo Altissimo, ao reconhecer-se que efectivamente n?o est?o satisfeitos com a marcha que modernamente teem tomado as coisas sobre a esphera terrestre.

O mais vulgar porem, da parte de Deus, ? a indifferen?a imperturbavel pelo ardor, ainda o mais comichoso, d'aquelles que servem a sua egreja, pondo-se de Deus ? esquina para a gente e vibrando a religi?o como a grande moca benzida com que atiram ? testa de quantos andam a ganhar a sua vida por este mundo, emquanto suas excellencias est?o em folga temporal nas sacristias, locupletando-se de bemaventuran?a futura e d'hostias quotidianas.

Garibaldi, por exemplo, escusa de pensar em entrar jamais no ceu com a sua famosa camisola, cujo vermelho ardente poria ao longo da Via Lactea um rub?r d'aurora. Garibaldi que se aguente como puder nas profundidades do inferno, pequeno de mais talvez para conter toda a paix?o de liberdade que encheu na terra o seu cora??o maldito. Elle levou uma fava preta do Todo Pedroso snr Fernando, e S. Pedro est? prevenido.

O nobre conde de Santiago, pelo contrario, ? recebido por aclama??o, com a sua chapeleira e o seu ripanso, no comboyo expresso, organisado por estes senhores, do Passeio Publico para a Bemaventuran?a. Esse pieodoso fidalgo est? nomeado secretario do congresso catholico, o que lhe d? no seio da christandade honras antecipadas de serafim. Com o privilegio de redigir as actas do sagrado concilio o nobre conde acha-se concomitantemente investido no direito de poder andar d'azas, desdo j?, por este mundo. Mais alguns mezes de fervor e de secretariado da parte de s.ex.?, e poderemos alimentar a esperan?a de o ver ainda atravessar o Chiado como o atravessam os perus, isto ?--em pennas. A natural pudicicia de s.ex.? lhe vedar? por?m talvez o circular entre os viventes vestido unicamente com os espanadores dorsaes destinados ao convivio dos cherubins no gallinheiro celeste.

O aspecto do recente congresso catholico do Passeio Publico tal como os noticiarios nol-o descrevem parece-nos de uma pompa particularmente modesta, destinada, a n?o excitar represalias da parte do snr. Fran?a Neto.

Meia duzia de padrecas, com as suas sobrecasacas dominicaes e os seus chapeus altos anediados de novo para decoro das cor?as subjacentes, mais outros tantos seculares vestidos de preto e puxados ? substancia do panno fino pela benzina expurgante, postos todos em volta de uma meza a assoarem-se uns para os outros com emphase, d?o-nos menos a ideia de um ajuntamento triumphante de convic??es victoriosas do que o painel de um simples ciprestal sentado,--com defluxo.

Alem de solicitar a ben??o apostolica, o congresso catholico de Lisboa resumiu os seus trabalhos em duas unicas resolu??es: fundar uma universidade catholica e requerer dos poderes publicos que por meio da sua policia elles fa?am respeitar nas ruas as pessoas dos ecclesiasticos, presentemente apupados pela multid?o, segundo elles mesmos dizem, sempre que apparecem em publico revestidos de habitos sacerdotaes. O que, a ser exacto, ? precisamente a mesma coisa que succedia em Paris ao padre Lacordaire no tempo da Restaura??o. Notando-se que a Restaura??o foi de todos os governos em Fran?a aquelle que mais protegeu o clero, fica-se em duvida sobre se a interven??o do governo ser? o meio efficaz de garantir aos ecclesiasticos a deferencia e o respeito, que ninguem jamais lhes recusa nos paizes de liberdade religiosa, em que o Estado ? atheu, como na America do Norte.

Se compararmos o espirito e o aspecto d'esta assembleia catholica com algumas reuni?es do mesmo genero celebradas na Europa durante o decurso dos ultimos annos, somos obrigados a confessar que o prestigio do sacerdocio decae de um modo sensibilisador.

No congresso belga, por exemplo, reunido em Malines no mez d'agosto de 1863, o numero dos adherentes era de 3:000. Na cathedral de Saint-Rombaut, o cardeal-arcebispo Sterchx celebrou a missa solemne d'abertura, depois da qual os membros do congresso seguiram em prociss?o para a vasta sala das sess?es, engrinaldada de fest?es de rosas e empavesada de tropheus de todas as bandeiras da christandade como uma enorme nau em triumpho. No topo do sal?o o estrado destinado ? meza era coberto por um docel de velludo carmesim franjado d'ouro sobre o qual se destacava na doce pallidez do marfim uma imagem de Jesus cravado de brilhantes na cruz d'ebano. Esveltos soldados da milicia papal, em grande uniforme, de capacetes rutilantes e bigodes recurvos, fazem alas lendo ao tiracollo as bandas symbolicas de seda branca e ouro. O alto clero que vem tomar assento na assembleia passa em pompa, gravemente, por cima do tapete de Smirna desenrolado ao longo da sala. ? frente, os cardeaes com as suas purpuras ro?agantes; depois os bispos inglezes, os de Gand, de Tournay, de Namur, appoiados aos seus baculos, e os sacerdotes do rito armenio, de grandes barbas, chapeus altos sem abas com veus roxos, empunhando as suas longas bengalas de cast?o de ouro.

Foi no congresso de Malines que De Montalembert, o antigo collaborador do abbade Lamennais, proferiu o seu monumental discurso sobre a egreja livre no estado livre. De Montalembert acreditava ainda na possibilidade de uma allian?a entre o espirito ecclesiastico e o espirito scientifico do mundo moderno, e o seu discurso ? n'esse intuito um manifesto de uma rara eloquencia apaixonada, profundamente convicta.

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Em seguida Montalembert demonstra que n'este seculo a egreja ou ha de cessar de existir ou ha de viver na democracia e na liberdade. A egreja, ou n?o tem mais que fazer no mundo, ou tem que contribuir ainda como nos tempos que fizeram a gloria do seu passado, para a perfectibilidade do espirito humano, intervindo no progresso pelo combate da livre raz?o contra todas as usurpa??es, contra todos os privilegios, contra todas as tyrannias exercidas sobre a inviolavel fraternidade humana.

A liberdade ? uma s?, unica, indivisivel e sagrada, expressa pelo predominio dos poderes espirituaes sobre os poderes temporaes, representada na parte dynamica pela sciencia, na parte statica pela religi?o.

Na sciencia a liberdade consiste no direito de descobrir a verdade e de a proclamar sem disfarce e sem restric??o alguma como base das rela??es do homem com o homem na independencia absoluta da revela??o e da f?. Na religi?o a liberdade consiste, como dizia Guizot, no direito que tem a consciencia humana de n?o ser governada nas suas rela??es com Deus por decretos ou por castigos humanos.

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Esta energica apologia da liberdade, enthusiasticamente applaudida, levou o congresso de Malines a ridigir nos seguintes termos uma das resolu??es da assembleia: <>

O que succedeu no congresso de Malines foi que os cardeaes e os bispos abandonaram a reuni?o no dia immediato ?quelle em que Montalembert fizera o elogio da allian?a da egreja catholica com a sciencia e com a liberdade.

Em presen?a d'esses factos, os congressistas de Malines tinham duas resolu??es que tomar: submetter-se e acceitar a doutrina da encyclica e do syllabus, ou reagir e protestar. O primeiro caso era a retracta??o vergonhosa de todos os principios affirmados e de todas as aspira??es manifestas no congresso; o segundo caso era a revolta e o schisma no gremio da egreja.

N'esta conjunctura escabrosa o congresso preferiu dissolver-se.

Desde esse dia o destino do catholicismo ficou fixado.

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