Read Ebook: As Farpas: Chronica Mensal da Politica das Letras e dos Costumes (1882-11/12) by Ortig O Ramalho Editor Queir S E A De Editor
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Ebook has 278 lines and 20335 words, and 6 pages
Desde esse dia o destino do catholicismo ficou fixado.
Entre os interesses do clero e os interesses da civilisa??o ha uma barreira que os proprios padres, ainda os mais instruidos e os mais liberaes, julgaram impossivel transp?r.
Ora desde que n?o p?de ser um alliado, o que est? evidentemente demonstrado, o padre ? um inimigo. Para o combatermos a nossa primeira obriga??o ? tomar conhecimento das for?as de que elle disp?e para nos prejudicar. Sobre este ponto a resolu??o tomada pelo congresso do Passeio Publico de pedir a interven??o da policia civil para evitar que o povo troce o clero, tranquilisa-nos satisfatoriamente.
Torquemada requerendo para a queima dos sacrilegos um lampejo emprestado ao chifarote do habil Antunes ? um symptoma doce. O congresso prop?e-se morder os impios com a condi??o de que os impios lhe ponham as presas. ? a S. Bartholomeu a troco de um dentista. Se os querem ver cantar o c?ro dos punhaes, cedam-lhes o Vitry.
A unica coisa grave e perigosa para a sociedade, no congresso catholico de Lisboa, ? que, segundo parece, esse congresso foi divertido. As senhoras pelo menos assim o entenderam concorrendo em grande numero a todas as sess?es.
Que attractivos especiaes tem a classe ecclesiastica para captivar assim as adhes?es da mulher?
Investigando este phenomeno, vemos em primero logar que ha em Portugal tres especies distinctas de padres:--o padre das miss?es, o padre d'aldeia e o padre de sala.
Os padres das miss?es subdividem-se em dois grupos differentes: os aventureiros e os mysticos.
Os aventureiros viajam ordinariamente para a Africa por especula??o temporal, por amor ? vida d'emigrante, ? lavoura dos tropicos, ao lucro mercantil, ? intriga da politica colonial e ? batota ultramarina. De quando em quando, ao apparececrem-lhes ? m?o, arrebanhados, alguns centos de pretos mansos e somnolentos, baptisam-os em massa,--cerimonia tocante a que os pretos se submettem adormecidos como verdadeiros justos, conscios por experiencias feitas de que essa opera??o, altamante civilisadora posto que inoffensiva, os n?o torna nem mais nem menos pretos do que elles s?o.
Uma vez em communica??o com os infieis, nunca mais cessam de lhes metter o breviario em cruz entre a bocca e o prato, at? conseguirem realisar a sua aspira??o suprema, que ? n?o restar d'elles mais que uma batina e um par de sapatos, deitados para debaixo da meza juntamente com as cascas dos legumes, e dois canibaes a palitarem os dentes, e, a dizerem um para o outro:
--Saboroso padre! benza-o Manipanso!
O padre d'aldeia ? d'ordinario o melhor dos homens.
A sua rudeza montesinha colloca-o ao abrigo de todas as subtilezas enervantes da penitencia requintada e dos pequenos peccados elegantes e estonteadores.
As suas intimidades com a s? natureza d?o-lhe o instincto de uma boa religi?o alegre e repicada, com arcos de murta no adro tapetado de espadanas, de funcho e de rosmaninho, na festa do orago, com morteiros ? missa cantada, n'uma vasta satisfa??o de cajados reluzentes, de sapatorros novos nos rapazes, de barbas feitas nos velhos, e de mangas arrega?adas, de linho branco e fresco, nas queijadeiras postadas em fila no arraial.
Na quaresma conduz de sobrepeliz uma grave e, simples via-sacra ? roda da egreja, de cruzeiro em cruzeiro, at? ? grade do cemiterio.
Pelo Natal, ao terminar a missa da festa, toma do altar a ingenua e rosada imagem de um pequeno Jesus rechonchudo, de refeguinhos nos artelhos e nos pulsos, e ao som da gaita de folle, passeia-o sob um chuveiro de beijos humidos e repenicados por entre as broas de p?o podre, os cabazes d'ovos e os casaes de cap?es, que atravancam a passagem por entre os fieis ajoelhados na nave.
Nos dias ordinarios engrola a missa das almas ao romper do dia n'um latim abreviado, mastigado ? pressa, e vae podar as cepas, sachar o cebolo, enxertar os limoeiros ou ca?ar as perdizes, palmilhando o monte, saltando vallados, e regressando a casa ao toque das Ave-Marias, com os perdigueiros adeante, a espingarda na bandoleira; dando as b?as noites para a direita e para a esquerda ao atravessar a aldeia; batendo no hombro aos homens, beliscando na cara as raparigas, com a boa jovialidade carnal do seu velho confrade de Meudon o reverendo Rabelais.
N?o est? persistente n'uma s? casa, como nas antigas capellanias. Anda aos dias. Aos domingos vae jantar a casa das F., onde serve ao croquet ou ao lawn-tennis no jardim, e onde marca as carambolas no bilhar ? noite. ?s segundas feiras chaperona a li??o de desenho das meninas S. ?s ter?as acompanha a viscondessinha de X ?s suas devo??es a S. Luiz e a outros logares. ?s quintas d?o-lhe ch? preto e p?o torrado com manteiga para ir fazer perna ao wihst da velha baroneza de P.
Aos ser?es, em torno do candieiro, depois de despejado o saco das mexeriquices que traz das casas d'onde vem, v? as gravuras das Illustra??es, ou dorme. As meninas procuram ?s vezes arrancal-o ao torp?r da sua digest?o ou da sua ignorancia, ambas egualmente crassas:
--Padre Jos?, esperte! n?o se fa?a ainda mais mono do que ?; scintille para ahi um boccado; tenha faisca, ainda que seja em latim, ou em canto ch?o!
--Cada vez mais bruto! uma lastima! um cumulo!
Quem precisa de padre e o n?o tem ? m?o, pede-o emprestado, como se pede emprestado ao visinho um alicate ou um martello. Sophia, que est? em Cintra, escreve para Lisboa a uma amiga:
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?s vezes o padre de sala dosapparece por algum tempo da circula??o, posto na escada com a respectiva bagagem,--uma camisa, um pente, dois pares de piugas embrulhadas n'um jornal--, e uma pontuada de bengala nos rins em estimulo de velocidade para a porta da rua.
Algu?m ? noite pergunta:
--Que ? feito do padre Jo?o?
E o dono da casa, levantando os olhos do jornal que l? a um canto, responde lentamente:
-Mandei-o rinchar para as lesirias. Come?ava a achar-se folgado de mais para se continuar a ter ? argola. ? o que lhe fiz sentir esta manh? por meio de uma ligeira admoesta??o corporea.
--Mas o physico do sacerdote ? inviolavel ? sagrado!
De resto, entre as familias dislinctas de Lisboa, quando alguem quer casar-se, confessar-se com decencia, ou receber soccorros espirituaes para morrer com elegancia, vae aos Inglezinhos ou manda pedir a S. Luiz dos Francezes a visita do reverendo Abb? Miel.
O padre extrangeiro tem sobre o padre indigena a vantagem de n?o se haver abandalhado nas elei??es, de n?o ir para a plateia de S. Carlos applaudir a opera e dizer gra?olas ?s senhoras suas confessadas, que est?o nas bancadas ao p? d'elle, de n?o andar pelas casas particulares com as piugas e com as fraquezas embrulhadas em papeis, e de n?o misturar nunca--a n?o ser no sigillo do sanctuario--o bacalhau norueguez do preceito abstinencial com o lombo de porco da carnalidade gentilica e pecaminosa.
Alem do que como v?m feitos de fora, n?o consta na confidencia dos lisboetas nem nas revela??es mais desabotoadas das villegiaturas de Cintra ou de Cascaes qual a especie de pau de larangeira com que elles foram manufacturados.
Que os revolucionarios obtenham outro tanto, se s?o capazes!
Confronte-se, por exemplo, o Club Gomes Leal com a sacristia dos condes de Castello Melhor. Que contraste!
Esse club reunir? facilmente nas suas sess?es todas as gravatas vermelhas do partido e todas as blusas do bairro. Emquanto aos logares reservados ?s damas, ser? mais difficil prehenchel-os. Logo que D. Angelina Vidal haja tomado assento na assembleia, a commiss?o encarregada de conduzir as senhoras ao sanctuario da poesia revolucionaria poder? tirar as luvas, accender os cigarros e desabotoar os colletes, que n?o ter? mais ninguem para conduzir.
A raz?o d'este phenomeno significativo ? que os padres e os padristas, por menos espertos e menos habeis que sejam, t?em por baixo de si a levantal-os mais alto do que todos n?s, oito seculos de talento, de discuss?o e de controversia, que fizeram da theologia o maior dos monumentos do espirito. Os seus doutores, os seus martyres, os seus heresiarchas e os seus apostatas representam no dominio do pensamento o triumpho mais maravilhoso d'essa grande for?a chamada o estudo.
A antiga tradi??o, a auctoridade consagrada, o respeito adquirido, trespassado pela heriditariedade de gera??o em gera??o, torna hoje facil o officio de continuar a manter nas consciencias os habitos do respeito e a pratica da devo??o.
O mal dos revolucionarios na propaganda moderna consiste no grave erro de suppor que se pode ir para livre pensador assim como geralmente se vae para padre, isto ?, por simples estupidez.
Ora ser padre quando se n?o tem cabe?a para ser qualquer outra coisa mais util, ? corrente, ? commodo, faz arranjo ?s familias com filhos tapados para contas, e n?o tem perigo nenhum.
Na Egreja quem n?o sabe outra coisa diz missas. Na Revolu??o quem n?o sabe mais nada diz asneiras. Essa ? a differen?a.
As mulheres, que em geral n?o conhecem os chefes da Revolu??o, assim como tambem n?o conhecem os da Egreja, que nunca leram Diderot nem Proudhon nem Michelet, como egualmente n?o leram nunca S. Paulo nem Santo Agostinho nem S. Thomaz, obrigadas a examinar pelos caracteres inferiores e a escolher pelos elementos subalternos, preferem a missa, e fazem bem. Na incapacidade, bem como na pornographia, o latim attenua.
O erro dos padres nas suas rela??es com o seculo--pedimos licen?a para lh'o dizer--est? unicamente em tentarem ainda algumas vezes exprimir-se em vulgar. Para prestigio da classe e decoro d'elles, aconselhamos ardentemente a suas excellencias o uso exclusivo das lingoas mortas,--convindo porem exceptuar de tal numero o latim de Moli?re, pois consta haver alguns velhos latinistas que ainda entendem esse.
Saraiva de Carvalho era possuidor de uma cabe?a distincta das de todos os demais estadistas monarchicos do seu partido pela circunstancia extra-conservadora e extra-parlamentar, pela circumstancia verdadeiramente tumultuaria, excepcional e incommoda de ter algumas ideias dentro, de as cultivar e de procurar algumas vezes, ainda que debalde, transformal-as em obras.
? dynastia brigantina prestara este pensador o mais relevante servi?o, lembrando um dia que as formas vigentes de governo se poderiam vir a substituir pondo-se escriptos no palacio da Ajuda.
Era esse o meio mais engenhoso e ao mesmo tempo o mais seguro de perpetuar para todo sempre a localisa??o da familia dos actuaes inquilinos na desagradavel madrepora de principes a que serve de jazigo aquelle notavel edificio. Pois ? evidente que, posto esse casar?o a alugar, com escriptos, com annuncios; e ainda com premios animadores ?s agencias de casas baratas, ninguem absolutamente no mundo tomaria de renda tal predio, assas desconceituado no publico pela falta de commodos que offerece para habita??o, de familia, pelos maus cheiros que n'elle grassam, pela enorme melancolia mesenterica que d'elle transsuda e pela aterrad?ra quantidade de carochas e de ratos de cano e de throno, que o infestam, sevandijam e conspurcam.
Antonio Rodrigues Sampaio era um escriptor de primeira ordem no meio de um jornalismo onde os escriptores cada vez se v?o tornando mais raros. Elle foi um dos artistas que mais gloriosamente serviu a sua patria escrevendo bem a sua lingoa, e foi, al?m d'isso, entre os homens politicos do seu tempo aquelle que mais altas e mais fortes qualidades de espirito, de cora??o e de caracter sacrificou ?s institui??es vigentes.
O chefe dessas institui??es, no dia do enterro de Sampaio, ia mitigar a sua d?r por essa morte, ouvindo a opera em S. Carlos.
No dia do enterro de Saraiva de Carvalho o mesmo augusto principe ia para o Gymnasio ver o atirador Paine quebrar globos de cristal a balas de pistola.
Comprehende-se a angustia profunda que assim impelliu o primeiro cidad?o portuguez a procurar nos interessantes phenomenos da balistica expostos por um pellotiqueiro impavido, ou nos falsetes garganteados por um tenor delambido, uma justa e equitativa compensa??o ? perda dos mais illustres dos seus compatriotas.
Referindo as circumstancias funebres d'estes obitos, a historia dir?:
E os prosteros, ao lerem esta pagina commovedora, verter?o lagrimas de enternecimento sobre esse testemunho eloquentissimo da delicadeza profunda de t?o excelso qu?o sensivel principe.
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