Read Ebook: A Relíquia by Queir S E A De
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Ebook has 1370 lines and 84161 words, and 28 pages
E, sempre que aterrava a titi e os sacerdotes, sorvia gravemente uma pitada.
Eu c?rava, modesto.
Ora foi justamente passeando com elle no Rocio, n'um dia d'agosto, que eu conheci um parente nosso, afastado, primo do commendador G. Godinho. O dr. Margaride apresentou-m'o, dizendo apenas:--<
Eu fui l? n'um domingo. Quasi n?o havia moveis; a bacia da cara, a unica, estava entalada no fundo r?to da palhinha d'uma cadeira. O Xavier toda a manh? deit?ra escarros de sangue pela bocca. E a Carmen, despenteada, em chinelas, arrastando uma bata de fust?o manchada de vinho, embalava sorumbaticamente pelo quarto uma crian?a embrulhada n'um trapo e com a cabecinha coberta de feridas.
--Tu ? que lhe devias fallar, Theodorico! Tu ? que lhe devias dizer... Olha essas crian?as. Nem meias teem... Anda c?, Rodrigo, dize aqui ao tio Theodorico. Que comeste hoje ao almo?o?... Um bocado de p?o d'hontem! E sem manteiga, sem mais nada! E aqui est? a nossa vida, Theodorico! Olha que ? duro, menino!
Enternecido, prometti fallar ? titi.
Fallar ? titi! Eu nem ousaria contar ? titi que conhecia o Xavier, e que entrava n'esse casebre impuro onde havia uma hespanhola, emmagrecida no peccado.
E para que elles n?o percebessem o meu ignobil terror da titi, n?o voltei ? rua da F?.
No meado de setembro, no dia da Natividade de Nossa Senhora, soube pelo dr. Barroso que o primo Xavier, quasi a morrer, me queria fallar em segredo.
Fui l?, de tarde, contrariado. Na escada cheirava a febre. A Concha, na cozinha, conversava por entre solu?os com outra hespanhola, magrita, de mantilha preta e corpetesinho triste de setim c?r de cereja. Os pequenos, no ch?o, rapavam um tacho d'a?orda. E na alcova o Xavier, enrodilhado n'um cobertor, com a bacia da cara ao lado, cheia de escarros de sangue, tossia, despeda?adamente:
--?s tu, rapaz?
--Ent?o que ? isso, Xavier?
--Mas ? necessario que tu me ajudes, rapaz, que a enterne?as! Quando ella l?r o annuncio, conta-lhe esta miseria! Desperta-lhe o brio. Dize-lhe que ? uma vergonha v?r morrer ao abandono um parente, um Godinho. Dize-lhe que j? se rosna! Olha, se hoje pude tomar um caldo, ? que essa rapariga, a Lolita, que est? em casa da Benta Bexigosa, nos trouxe ahi quatro cor?as... V? tu a que eu cheguei!
Ergui-me, commovido.
--Conta commigo, Xavier.
--Olha, se tens ahi cinco tost?es que te n?o fa?am falta, d?-os ? Concha.
Dei-lh'os a elle: e sahi, jurando-lhe que ia fallar ? titi, solemnemente, em nome dos Godinhos e em nome de Jesus!
Ent?o pareceu-me v?r, voltados para mim, l? do fundo n? do casebre, os olhos afflictos do Xavier; a face amarella da Concha, lavada de lagrimas; as pobres m?osinhas dos pequenos, magras, ? espera da c?dea de p?o... E todos aquelles desgra?ados anciavam pelas palavras que eu ia lan?ar ? titi, fortes, tocantes, que os deviam salvar, e dar-lhes o primeiro peda?o de carne d'aquelle ver?o de miseria. Abri os labios. Mas j? a titi, recostando-se na cadeira, rosnava com um sorrisinho feroz:
--Que se aguente... ? o que succede a quem n?o tem temor de Deus e se mette com bebedas... N?o tivesse comido tudo em relaxa??es... C? para mim, homem perdido com saias, homem que anda atraz de saias, acabou... N?o tem o perd?o de Deus, nem tem o meu! Que pade?a, que pade?a, que tambem Nosso Senhor Jesus Christo padeceu!
Baixei a cabe?a, murmurei:
--E ainda n?s n?o padecemos bastante... Tem a titi raz?o. Que se n?o mettesse com saias!
Ella ergueu-se, deu as gra?as ao Senhor. Eu fui para o meu quarto, fechei-me l?, a tremer, sentindo ainda regeladas e amea?adoras, as palavras da titi, para quem os homens <
Abri devagarinho o bah?, descosi o f?rro, tirei a carta deliciosa da Thereza, a fita que conserv?ra o aroma da sua pelle, e a sua photographia, de mantilha. Na pedra da varanda, sem piedade, queimei tudo, amabilidades e fei??es: e sacudi desesperadamente para o sagu?o as cinzas da minha ternura.
N'essa semana n?o ousei voltar ? rua da F?. Depois, um dia que choviscava, fui l?, ao escurecer, encolhido sob o meu guarda-chuva. Um visinho, vendo-me espreitar de longe as janellas negras e mortas do casebre, disse-me que o snr. Godinho, coitado, f?ra para o hospital n'uma maca.
Desci, triste, ao comprido das grades do Passeio. E, no crepusculo humido, tendo ro?ado bruscamente por outro guarda-chuva, ouvi de repente o meu nome de Coimbra, lan?ado com alegria.
--Oh, Rapos?o!
--Queres tu vir c? um bocado, ? Rapos?o? Est? l? outra rapariga bonita, a Adelia... Tu n?o conheces a Adelia? Ent?o que diabo, vem v?r a Adelia... ? um mulher?o!
Era, um domingo, noite de partida da titi; eu devia recolher religiosamente ?s oito horas. Cocei a barba, indeciso. O Rinch?o fallou da brancura dos bra?os da Adelia: e eu comecei a caminhar ao lado do Rinch?o, enfiando as luvas pretas.
Munidos d'um cartucho de pasteis e de uma garrafa de Madeira, encontr?mos a Ernestina a coser um elastico nas suas botinas de duraque. E a Adelia, estendida no sof?, de chambre e em saia branca, com os chinelos cahidos no tapete, fumava um cigarro languido. Eu sentei-me ao lado d'ella, commovido e mono, com o meu guarda-chuva entre os joelhos. S? quando o Silverio e Ernestina correram dentro ? cozinha, abra?ados, a buscar copos para o Madeira, ousei perguntar ? Adelia, c?rando:
--Ent?o a menina d'onde ??
Fui eu que lhe offereci o prato onde a Ernestina colloc?ra os pasteis. Ella quiz saber o meu nome. Tinha um sobrinho que tambem se chamava Theodorico; e isto foi como um fio subtil e forte que veio, do seu cora??o, enrodilhar-se no meu.
--Porque ? que o cavalheiro n?o p?e o guarda-chuva alli a um canto? disse-me ella, rindo.
O brilho picante dos seus dentinhos miudos fez desabrochar dentro em mim uma fl?r de madrigal.
--? para n?o me tirar d'aqui d'ao p? da menina nem um instantinho que seja.
Ella fez-me uma cocega lenta no pesco?o. Eu, aboborado de g?zo, bebi o resto do Madeira que ella deix?ra no calice.
N'esse d?ce instante, um relogio medonho, com o mostrador fingindo uma face de lua, e que parecia espreitar-me de sobre o marmore d'uma mesa do mogno, d'entre dois vasos sem fl?res, come?ou a dar dez, horas, fanhoso, ironico, pachorrento.
Jesus! era a hora do ch? em casa da titi! Com que terror eu trepei, esbaforido, sem mesmo abrir o guarda-chuva, as viellas escuras e infindaveis que levam ao Campo de Sant'Anna! Em casa, nem tirei as botas enlameadas. Enfiei pela sala; e vi logo, l? ao fundo, no sof? de damasco, os oculos da titi, mais negros, assanhados, esperando por mim e fuzilando. Ainda balbuciei:
--Titi...
Mas j? ella gritava, esverdinhada de c?lera, sacudindo os punhos.
--Relaxa??es em minha casa n?o admitto! Quem quizer viver aqui ha de estar ?s horas que eu marco! L? deboches e porcarias, n?o, emquanto eu f?r viva! E quem n?o lhe agradar, rua!
Sob a rajada estridente da indigna??o da snr.^a D. Patrocinio, padre Pinheiro e o tabelli?o Justino tinham dobrado a cabe?a emba?ados. O dr. Margaride, para apreciar conscienciosamente a minha culpa, puxou o seu pesado relogio d'ouro. E foi o bom Casimiro que interveio, como sacerdote, como procurador, influente e suave.
--D. Patrocinio tem raz?o, tem muita raz?o em querer ordem em casa... Mas talvez o nosso Theodorico se tivesse demorado um pouco mais no Martinho, a ouvir fallar d'estudos, de compendios...
Exclamei amargamente:
--Nem isso, padre Casimiro! Nem no Martinho estive! Sabe onde estive? No convento da Encarna??o! ? verdade, encontrei um condiscipulo meu, que ia l? buscar a irm?. Hoje era festa, a irm? tinha ido passar o dia com uma tia, uma commendadeira... Estivemos ? espera, a passear no pateo... A irm? vai casar, elle andou a contar-me do noivo, e do enxoval, e do apaixonada que ella est?... Eu morto por me safar, mas com ceremonia do rapaz, que ? sobrinho do bar?o d'Alconchel... E elle z?s, z?s, a fallar da irm?, e do namoro, e das cartas...
A tia Patrocinio uivou de furor.
--Olha que conversa! Que porcaria de conversa! Que indecente conversa para o pateo d'uma casa de religi?o! Cala-te, alma perdida, que at? devias ter vergonha!... E fique entendendo! Para outra vez que venha a estas horas, n?o me entra em casa! Fica na rua, como um c?o...
Ent?o o dr. Margaride estendeu a m?o pacificadora e solemne:
--Est? tudo explicado! O nosso Theodorico foi imprudente, mas o sitio onde esteve ? respeitavel... E eu conhe?o o bar?o d'Alconchel. ? um cavalheiro da maior circumspec??o, e um dos mais abastados do Alemtejo... Talvez mesmo um dos mais ricos proprietarios de Portugal... O mais rico, direi!... Mesmo l? f?ra n?o haver? fortuna territorial que lhe exceda. Nem que se lhe compare!... S? em porcos! S? em corti?a! Centenares de contos! milh?es!
Erguera-se; o seu vozeir?o empolado rolava serras d'ouro. E o bom Casimiro murmurava, ao meu lado, com brandura:
--Tome o seu ch?sinho, Theodorico, v? tomando o seu ch?sinho. E creia que a tia n?o deseja sen?o o seu bem...
Puxei, com a m?o a tremer, a minha chavena de ch?: e, remexendo desfallecidamente o fundo d'assucar, pensava em abandonar para sempre a casa d'aquella velha medonha que assim, me ultrajava diante da Magistratura e da Igreja, sem considera??o pela barba que me come?ava a nascer, forte, respeitavel e negra.
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