Read Ebook: O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias by Ortig O Ramalho Queir S E A De
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Ebook has 1687 lines and 65049 words, and 34 pages
mbos robustos; poderiamos talvez resistir por dez minutos, ou por um quarto de hora, e durante esse tempo nada mais provavel, em estrada t?o frequentada como a de Cintra n'esta quadra, do que apparecerem passageiros que nos prestassem aux?lio.
Todavia confesso que me sentia attrahido para o imprevisto de uma t?o extranha aventura.
Nenhum caso anterior, nenhuma circumstancia da nossa vida nos permittia suspeitar que alguem podesse ter interesse em exercer comnosco press?o ou violencia alguma.
Sem eu bem poder a esse tempo explicar porqu?, n?o me parecia tambem que as pessoas que nos rodeavam projectassem um roubo, menos ainda um homicidio. N?o tendo tido tempo de observar miudamente a cada um, e tendo-lhes ouvido apenas algumas palavras fugitivas, figuravam-se-me pessoas de bom mundo. Agora que de esp?rito socegado penso no acontecido, vejo que a minha conjectura se baseava em varias circumstancias dispersas, nas quaes, ainda que de relance, eu attentara, mesmo sem proposito de analyse. Lembro-me, por exemplo, que era de setim alvadio o forro do chapeu do que levara a pancada na cabe?a. O que apont?ra o rewolver a F... trazia cal?ada uma luva c?r de chumbo apertada com dois bot?es. O que me ajud?ra a levantar tinha os p?s finos e botas envernizadas; as cal?as, de casimira c?r de avel?, eram muito justas e de presilhas. Tinha esporas.
N?o obstante a disposi??o em que me achava de ceder da lucta e de entrar no trem, perguntei em allem?o ao meu amigo se elle era de opini?o que resistissemos ou que nos rendessemos.
--Rendam-se, rendam-se para nos poupar algum tempo que nos ? precioso! disse gravemente um dos desconhecidos. Por quem s?o, acompanhem-nos! Um dia saber?o por que motivo lhes sahimos ao caminho mascarados. Damos-lhes a nossa palavra que ?manh? estar?o nas suas casas, em Lisboa. Os cavallos ficar?o em Cintra d'aqui a duas horas.
Cederam-nos os melhores logares. O homem que se achava em frente da parelha segurou os nossos cavallos; o que fizera cair o poldro subiu para a almofada e pegou nas guias; ou outros dois entraram comnosco e sentaram-se nos logares fronteiros aos nossos. Fecharam-se em seguida os stores de madeira dos postigos e correu-se uma cortina de seda verde que cobria por dentro os vidros fronteiros da carruagem.
No momento de partirmos, o que ia guiar bateu na vidra?a e pediu um charuto. Passaram-lhe para f?ra uma charuteira de palha de Java. Pella fresta por onde recebeu os charutos lan?ou para dentro do trem a mascara que tinha no rosto, e partimos a galope.
Quando entrei para a carruagem pareceu-me avistar ao longe, vindo de Lisboa, um omnibus, talvez uma sege. Se me n?o illudi, a pessoa ou pessoas que vinham no trem a que me refiro ter?o visto os nossos cavallos, um dos quaes ? russo e o outro castanho, e poder?o talvez dar noticia da carruagem em que ?amos e da pessoa que nos servia de cocheiro. O coup? era, como j? disse, verde e preto. Os stores, de mogno polido, tinham no alto quatro fendas estreitas e oblongas, dispostas em cruz.
Falta-me tempo para escrever o que ainda me resta por contar a horas de expedir ainda hoje esta carta pela posta interna.
Continuarei. Direi ent?o, se o n?o suspeitou j?, o motivo porque lhe occulto o meu nome e o nome do meu amigo.
Julho, 24 de 1870--Acabo de ver a carta que lhe dirigi publicada integralmente por v. no logar destinado ao folhetim do seu periodico. Em vista da colloca??o dada ao meu escripto procurarei nas cartas que houver de lhe dirigir n?o ultrapassar os limites demarcados a esta sec??o do jornal.
Por esquecimento n?o datei a carta antecedente, ficando assim duvidoso qual o dia em que fomos surprehendidos na estrada de Cintra. Foi quarta feira, 20 do corrente mez de julho.
Passo de prompto a contar-lhe o que se passou no trem, especificando minuciosamente todos os pormenores e tentando reconstruir o dialogo que trav?mos, tanto quanto me seja possivel com as mesmas palavras que n'elle se empregaram.
Havia evidentemente o designio de nos desorientar no rumo definitivo que tomassemos.
? certo que, dois minutos depois de termos principiado a andar, me seria absolutamente impossivel decidir se ia de Lisboa para Cintra ou se vinha de Cintra para Lisboa.
Na carruagem havia uma claridade bassa e tenue, que todavia nos permittia distinguir os objectos. Pude ver as horas no meu relogio. Eram sete e um quarto.
O desconhecido que ia defronte de mim examinou tambem as horas. O relogio que elle n?o introduziu bem na algibeira do collete e que um momento depois lhe caiu, ficando por algum tempo patente e pendido da corrente, era um relogio singular que se n?o confunde facilmente e que n?o deixar? de ser reconhecido, depois da noticia que dou d'elle, pellas pessoas que alguma vez o houvessem visto. A caixa do lado opposto ao mostrador era de esmalte preto, liso, tendo no centro, por baixo de um capacete, um escudo de armas de ouro encobrado e polido.
Havia poucos momentos que caminhavamos quando o individuo sentado defronte de F..., o mesmo que na estrada nos instara mais vivamente para que o acompanhassemos, nos disse:
--Eu julgo inutil asseverar-lhes que devem tranquilisar-se inteiramente em quanto ? seguran?a das suas pessoas...
--Est? visto que sim, respondeu o meu amigo; n?s estamos perfeitamente socegados a todos os respeitos. Espero que nos fa?am a justi?a de acreditar que nos n?o t?em coactos pelo medo. Nenhum de n?s ? t?o crean?a que se apavore com o aspecto das suas mascaras negras ou das suas armas de fogo. Os senhores acabam de ter a bondade de nos certificar de que n?o querem fazer-nos mal: n?s devemos pela nossa parte annunciar-lhes que desde o momento em que a sua companhia principiasse a tornar-se-nos desagradavel, nada nos seria mais facil do que arrancar-lhes as mascaras, arrombar os stores, convidal-os perante o primeiro trem que passasse por n?s a que nos entregassem as suas pistolas, e relaxal-os em seguida aos cuidados policiaes do regedor da primeira parochia que atravessassemos. Parece-me portanto justo que principiemos por prestar o devido culto aos sentimentos da amabilidade, pura e simples, que nos tem aqui reunidos. D'outro modo ficariamos todos grotescos: os senhores terriveis e n?s assustados.
Com quanto estas cousas fossem ditas por F... com um ar de bondade risonha, o nosso interlocutor parecia irritar-se progressivamente ao ouvil-o. Movia convulsivamente uma perna, firmando o cotovello n'um joelho, pousando a barba nos dedos, fitando de perto o meu amigo. Depois, reclinando-se para traz e como se mudasse de resolu??o:
--No fim de contas, a verdade ? que tem raz?o e talvez eu fizesse e dissesse o mesmo no seu logar.
E, tendo meditado um momento, continuou:
--Que diriam por?m os senhores se eu lhes provasse que esta mascara em que querem ver apenas um symptoma burlesco ? em vez d'isso a confirma??o da seriedade do caso que nos trouxe aqui?... Queiram imaginar por um momento um d'esses romances como ha muitos: Uma senhora casada, por exemplo, cujo marido viaja ha um anno. Esta senhora, conhecida na sociedade de Lisboa, est? gravida. Que delibera??o ha de tomar?
Houve um silencio.
Eu aproveitei a pequena pausa que se seguiu ao enunciado um tanto rude d'aquelle problema e respondi:
--E o filho?
--O filho, desde que est? f?ra da familia e f?ra da lei, ? um desgra?ado cujo infortunio prov?m em grande parte da sociedade que ainda n?o soube definir a responsabilidade do pae clandestino. Se os paes fazem como a legisla??o, e mandam buscar gente ? estrada de Cintra para perguntar o que se ha de fazer, o melhor para o filho ? deital-o ? roda.
--O doutor discorre muito bem como philosopho distincto. Como puro medico, esquece-lhe talvez que na conjunctura de que se trata, antes de deitar o filho ? roda ha uma pequena formalidade a cumprir, que ? deital-o ao mundo.
--Isso ? com os especialistas. Creio que n?o ? n'essa qualidade que estou aqui.
--Engana-se. ? precisamente como medico, ? n'essa qualidade que aqui est? e ? por esse titulo que viemos busca-lo de surpresa ? estrada de Cintra e o levamos a occultas a prestar aux?lio a uma pessoa que precisa d'elle.
--Mas eu n?o fa?o clinica.
--? o mesmo. N?o exerce essa profiss?o; tanto melhor para o nosso caso: n?o prejudica os seus doentes abandonando-os por algumas horas para nos seguir n'esta aventura. Mas ? formado em Paris e publicou mesmo uma these de cirurgia que despertou a atten??o e mereceu o elogio da faculdade. Queira fazer de conta que vae assistir a um parto.
O meu amigo F... poz-se a rir e observou:
--Mas eu que n?o tenho curso medico nem these alguma de que me accuse na minha vida, n?o querer?o dizer-me o que vou fazer?
--Quer saber o motivo porque se encontra aqui?... Eu lh'o digo.
N'este momento por?m a carruagem parou repentinamente e os nossos companheiros sobresaltados ergueram-se.
Percebi que saltava da almofada o nosso cocheiro. Ouvi abrir successivamente as duas lanternas e raspar um phosphoro na roda. Senti depois estalir a mola que comprime a portinha que se fecha depois de accender as velas, e rangerem nos anneis dos cachimbos os p?s das lanternas como se as estivessem endireitando.
N?o comprehend? logo a raz?o porque nos tivessemos detido para similhante fim, quando n?o tinha ca?do a noite e ?amos por bom caminho.
Isto por?m explica-se por um requinte de precau??o. A pessoa que nos servia de cocheiro n?o quereria parar em logar onde houvesse gente. Se tivessemos de atravessar uma povoa??o, as luzes que principiassem a accender-se e que n?s veriamos atravez da cortina ou das fendas dos stores, poderiam dar-nos alguma id?a do sitio em que nos achassemos. Por esta f?rma esse meio de investiga??o desapparecia. Ao passarmos entre predios ou muros mais altos, a projec??o da luz forte das lanternas sobre as paredes e a reflex?o d'essa claridade para dentro do trem impossibilitava-nos de distinguir se atravessavamos uma aldeia ou uma rua illuminada.
Logo que a carruagem come?ou a rodar depois de accezas as lanternas, aquelle dos nossos companheiros que promettera explicar a F... a raz?o porque elle nos acompanhava, prosseguiu:
--O amante da senhora a quem me refiro, imagine que sou eu. Sabem-no unicamente n'este mundo tres amigos meus, amigos intimos, companheiros de infancia, camaradas de estudo, tendo vivido sempre juntos, estando cada um constantemente prompto a prestar aos outros os derradeiros sacrificios que p?de imp?r a amizade. Entre os nossos companheiros n?o havia um medico. Era mister obtel-o e era ao mesmo tempo indispensavel que n?o passasse a outrem, quem quer que fosse, o meu segredo, em que est?o envoltos o amor de um homem e a honra de uma senhora. O meu filho nascer? provavelmente esta noite ou ?manh? pela manh?; n?o devendo saber ninguem quem ? sua m?e, n?o devendo sequer por algum indicio vir a suspeitar um dia quem ella seja, ? preciso que o doutor ignore quem s?o as pessoas com quem falla, e qual ? a casa em que vae entrar. Eis o motivo por que n?s temos no rosto uma mascara; eis o motivo porque os senhores nos h?o de permittir que continuemos a ter cerrada esta carruagem, e que lhes vendemos os olhos antes de os apearmos defronte do predio a que v?o subir. Agora comprehende, continuou elle dirigindo-se a F..., a raz?o por que nos acompanha. Era-nos impossivel evitar que o senhor viesse hoje de Cintra com o seu amigo, era-nos impossivel adiar esta visita, e era-nos impossivel tambem deixal-o no ponto da estrada em que tom?mos o doutor. O senhor acharia facilmente meio de nos seguir e de descobrir quem somos.
--A lembran?a, notei eu, ? engenhosa mas n?o lisongeira para a minha discri??o.
--A confian?a na discri??o alheia ? uma trai??o ao segredo que nos n?o pertence.
F... achava-se inteiramente d'accordo com esta maneira de ver, e disse-o elogiando o esp?rito da aventura romanesca dos mascarados.
As palavras de F... accentuadas com sinceridade e com affecto, pareceu-me que perturbaram algum tanto o desconhecido. Figurou-se-me que esperava discutir mais tempo para conseguir persuadir-nos e que o desnorteava e surprehendia desagradavelmente esse c?rte imprevisto. Elle, que tinha a replica prompta e a palavra facil, n?o achou que retorquir ? confian?a com que o tratavam, e guardou, desde esse momento at? que cheg?mos, um silencio que devia pezar ?s suas tendencias expansivas e discursadoras.
? verdade que pouco depois d'este dialogo o trem deixou a estrada de macadam em que at? ahi rodara e entrou n'um caminho vicinal ou n'um atalho. O solo era pedregoso e esburacado; os solavancos da carruagem, que seguia sempre a galope governada por m?o de mestre, e o estrepito dos stores embatendo nos caixilhos mal permittiriam conversar.
Torn?mos por fim a entrar n'uma estrada lisa. A carruagem parou ainda uma segunda vez, o cocheiro apeou rapidamente, dizendo:
--L? vou!
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