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Read Ebook: Viagens na Minha Terra (Completo) by Almeida Garrett Jo O Batista Da Silva Leit O De Almeida Garrett Visconde De

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Ebook has 1977 lines and 72445 words, and 40 pages

E aqui direi eu com o vate Elmano:

Cam?es, grande Cam?es, quam similhante Acho teu fado ao meu quando os cotejo!

N?o lhe vejo remedio sen?o recorrer ao bem parado dos Elysios, da Styge, do Cocyto e seu termo: s?o terrenos neutros em que se p?de parlamentar com os mortos sem compromettimento serio, e....

Eis-me ahi no ?rro de Cam?es--e nas unhas dos criticos; e as zagunchadas a ferver em cima de mim, que fiz, que aconteci....

Mas, senhores, ponderem, venham ca: o que hade um homem fazer? O Dante n?o sei que gyria teve que baptisou Publio Virgilio Mar?o para lhe servir de cicerone nas regi?es do inferno, do paraizo e do purgatorio christ?o, e teve tam boa fortuna que nem o queimou a Inquisi??o nem o descompoz a Crusca, nem siquer o mutilaram os censores, nem o perseguiram delegados por abuso de liberdade de imprensa, nem o mandaram para os dignos pares... N?o se tinham ainda descoberto as manga??es liberaes que se usam hoje: e as cartas que o povo tinha era a liberdade ganha e sustentada ? ponta da espada, com muito cora??o e poucas palavras, muito patriotismo, poucas leis... e menos relatorios. N?o havia em Floren?a nem gazeta para louvar as tolices dos ministros, nem ministros para pagar as tolices da gazeta.

O Dante foi proscripto e exilado, mas n?o se ficou a escrever, deu catanada que se regallou nos inimigos da liberdade da sua patria.

Quem dera ca um batalh?o de poetas como aquelle!

Que fosse por?m um triste vate de hoje escrever no seculo das luzes o que escrevia o Dante no seculo das trevas! Os proprios philosophos gritavam: Que escandalo! Atheus professos clamavam contra a irreverencia; gentes que n?o teem religi?o, nem a de Mafoma, bradavam pela religi?o: entravam a p?r carapu?as nas cabe?as uns dos outros, cahiam depois todos s?bre o poeta, e--se o n?o podessem inforcar, pelo menos declaravam-n'o republicano, que dizem elles que ? uma inj?ria muito grande.

Nada! viva o nosso Cam?es e o seu maravilhoso mistiforio; ? a mais commoda inven??o d'este mundo: vou-me com ella, e ralhe a cr?tica quanto quizer.

Quero procurar no reino das sombras n?o menor pessoa que o marquez de Pombal: tenho que lhe fazer uma pergunta s?ria antes de chegar ao Cartaxo. E n?s ja vamos por entre as riccas vinhas que o circundam com uma zona de verdura e alegria. Depressa o ramo de oiro que me abra ao pensamento as portas fataes--depressa a unctuosa sopetarra com que heide atirar ?s tres gargantas do canzarr?o. Vamos...

Mas em que districto d'aquellas regi?es acharei eu o primeiro ministro d'elrei D. Jos?? Por onde est? Ixion e Tantalo, por onde demora Sysipho e outros magan?es que taes? N?o; esse ? um bairro muito triste, e arrisca-se a ter por administrador algum escandecido que me atice as orelhas.

Nos Elysios com o pae Anchises e outros barba?as classicos do mesmo jaez? Eu sei? tambem isso n?o. Hade ser n'aquellas ilhas bemaventuradas de que falla o poeta Alceu e onde elle poz a passear, por eternas verduras, as almas tyrannicidas de Harm?dio e Arist?giton...

E ei-lo alli: l? est? o bom do marquez a jogar o whist com o bar?o de Bidefeld, com o imperador Leopoldo e com o poeta Diniz. A partida deve de ser interessante, talvez aposta essa gente toda--esses manes todos que est?o ? roda. Que cara que fez o marquez a um finadinho que lhe foi metter o nariz nas cartas! Quem havia de ser! O intromettido de M. de Talleyrand. Estava-lhe cahindo. Mas n?o viu nada: o nobre marquez sempre soube esconder o seu j?go.

Deitou-me a tremenda luneta.

Apertou a luneta no sobr?lho e sorriu-se.

'Agora quem bebe por l? todo esse vinho?'

N?o sab?a o que lhe havia de responder. Elle sacudiu a cabelleira de anneis, virou-me as costas, deu o bra?o a Colbert, passou por-p? de Ricardo Smith e de J. Baptista Say, que estavam a disputar, incolheu os hombros em ar de compaix?o, e foi-se por uma alameda muito vi?osa que ia por aquelles deliciosos jardins dentro, e sumiu-se da nossa vista.

Eu surdi ca n'este mundo, e achei-me emcima da azemola, aop? do grande caf? do Cartaxo.

Reflex?es importantes s?bre o Bois-de-Boulogne, as carruagens de mollas, Tortoni, e o caf? do Cartaxo.--Dos caf?s em geral, e de como s?o o characteristico da civiliza??o de um paiz.--O Alfageme.--Hecatombe involuntaria immolada pelo A.--Historia do Cartaxo.--Demonstra-se como a Gran'-Bretanha deveu sempre toda a sua f?r?a e toda a sua gl?ria a Portugal.--Shakspeare e Laffitte, Milton e Chateaumargot, Nelson e o principe de Joinville.--Pr?va-se evidentemente que M. Guizot ? a ruina de Albion e do Cartaxo.

Pois acredite-me o leitor amigo, que sei alguma coisa dos sabores e dissabores d'este mundo, fie-se na minha palavra, que ? de homem experimentado: o prazer de chegar por aquelle modo a Tortoni, o apear da elegante caleche balan?ada nas mais suaves mollas que fabricasse arte ingleza do puro a?o de Suecia, n?o alcan?a, n?o se compara ao prazer e consola??o de alma e corpo que eu senti ao apear-me de minha choiteira mula ? porta do grande caf? do Cartaxo.

Fazem idea do que ? o caf? do Cartaxo? N?o fazem. Se n?o viajam, se n?o sahem, se n?o v?em mundo ?sta gente de Lisboa! E passam a sua vida entre o Chiado, a rua do Oiro e o theatro de San'Carlos, como h?ode alargar a esphera de seus conhecimentos, desinvolver o espirito, chegar ? altura do seculo?

Coroae-vos de alface, e ide jogar o bilhar, ou fazer sonetos ? dama nova, ide, que n?o prestais para mais nada, meus queridos Lisboetas; ou discuti os deslavados horrores de algum mellodrama velho que fugiu assoviado da 'Porte-Saint Martin' e veio esconder-se na Rua-dos-Condes. Tambem podeis ir aos Toiros--est?o imbolados, n?o ha perigo...

Viajar?.. qual viajar! at? ? Cova-da-Piedade, quando muito, em dia que l? haja cavallinhos. Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando que todas as pra?as d'este mundo s?o como a do Terreiro-do-Pa?o, todas as ruas como a rua Augusta, todos os caf?s como o do Marrare.

Pois n?o s?o, n?o: e o do Cartaxo menos que nenhum.

O caf? ? uma das fei??es mais characteristicas de uma terra. O viajante experimentado e fino chega a qualquer parte, entra no caf?, observa-o, examina-o, estuda-o, e tem conhecido o paiz em que est?, o seu gov?rno, as suas leis, os seus costumes, a sua religi?o.

Levem-me de olhos tapados onde quizerem, n?o me desvendem sen?o no caf?; e protesto-lhe que em menos de dez minutos lhe digo a terra em que estou se for paiz sublunar.

N?s entr?mos no caf? do Cartaxo, o grande caf? do Cartaxo; e nunca se incruzou turco em divan de seda do mais splendido harem de Constantinopla com tanto g?so de alma e satisfac??o de corpo, como n?s nos sent?mos nas duras e asperas t?buas das esguias banquetas mal sarapintadas que ornam o magn?fico estabelecimento bordalengo.

Em poucas linhas se descreve a sua simplicidade classica: ser? um parallelogrammo pouco maior que a minha alcova; ? esquerda duas mezas de pinho, ? direita o mostrador invidra?ado onde campeam as garrafas obrigadas de liquor de amendoa, de canella, de cravo. Pendem do tecto, laboriosamente arrendados por n?o vulgar tesoira, os pingentes de papel, convidando a lascivo repouso a inquieta ra?a das moscas. Reina uma frescura admiravel n'aquelle recinto.

Sent?mo-nos, respir?mos largo, e entr?mos em conversa com o dono da casa, homem de trinta a quarenta annos, de physionomia experta e sympathica, e sem nada do repugnante vill?o-ruim que ? tam usual de incontrar por similhantes logares da nossa terra.

--'Ent?o que novidades ha por ca pelo Cartaxo, patr?o?'

--'Novidades! Por aqui n?o temos sen?o o que vem de Lisboa.--Ahi est? a 'Revolu??o' de hontem...'

--'Jornaes, meu caro amigo! Vimos fartos d'isso. Diga-nos alguma coisa da terra. Que faz por ca o...'

--'O mestre J. P., o 'Alfageme?''

--'Como assim o Alfageme?'

--'Chamam-lhe o Alfageme ao mestre J. P.: pois ent?o! Uns senhores de Lisboa que ahi estiveram em casa do Sr. D. poseram-lhe esse nome, que a gente bem sabe o que ?; e ficou-lhe, que agora ja ninguem lhe chama sen?o o Alfageme. Mas quanto a mim, ou elle n?o ? Alfageme, ou n?o o hade ser muito tempo. N?o ? aquelle, n?o. Eu bem me intendo.'

A conversa??o tornava-se interessante, especialmente para mim: quizemos profundar o caso.

--'Muito me conta, Sr. patr?o! Com que isto de ser Alfageme, parece-lhe que ? coisa de?..

--'Parece-me o que ?, e o que hade parecer a todo o mundo. E alguma coisa sabemos, ca no Cartaxo, do que vai por elle. O verdadeiro Alfageme diz que era um espadeiro ou armeiro, cutileiro ou coisa que o valha, na Ribeira de Santarem; e que foi um homem capaz, e que tinha pelo povo, e que n?o queria saber de partidos, e que dizia elle: 'Rei que nos inforque, e papa que nos excommungue, nunca hade faltar. Assim, deixar os outros brigar, trabalhemos n?s e ganhemos a nossa vida.' Mas que extrangeiros que n?o queria, que ?sta terra que era nossa e co'a nossa gente se devia de governar. E mais coisas assim: e que porfim o deram por traidor e lhe tiraram quanto tinha.--Mas que lhe valeu o Condestavel e o n?o deixou arrazar, por que era homem de bem e fidalgo ?s direitas. Pois n?o ? assim que foi?'

--'?, sim, meu amigo. Mas ent?o d'ahi?'

--'Ent?o d'ahi o que se tira, ? que quando havia fidalgos como o sancto Condestavel tambem havia Alfagemes como o de Santarem. E mais nada.'

--'Perfeitamente. Mas porque chamaram ao mestre P. o Alfageme do Cartaxo?'

--'Eu lhe digo aos senhores: o homem nem era assim nem era assado. Fallava bem, tinha sua labia com o povo. D'ahi fez-se juiz, p?s por ahi suas coisas a direito--Deus sabe as que elle intortou tambem!.. ganhou nome no povo, e agora faz d'elle o que quer. Se lhe der sempre para bem, bom ser?.--Os senhores n?o tomam nada?'

O bom do homem visivelmente n?o queria fallar mais: e n?o deviamos importun?-lo. Fizemos o sacrificio de bom n?mero de lim?es que exprem?mos em profundas ta?as--vulgo, copos de canada--e com agua e assucar, offerecemos as devidas liba??es ao genio do logar.

Infelizmente o sacrificio n?o foi detodo incruento. Muitas hecatombes de myrmid?es cahiram no holocausto, e lhe deram um cheiro e sabor que n?o sei se agradou ? divindade, mas que injoou terrivelmente aos sacerdotes.

Sahimos a visitar o nosso bom amigo, o velho D., a honra e a alegria do Ribatejo. Ja elle sab?a da nossa chegada, e vinha no caminho para nos abra?ar.

Fomos dar, junctos, uma volta pela terra.

? das povoa??es mais bonitas de Portugal, o Cartaxo, aceada, alegre; parece o bairro suburbano de uma cidade.

N?o ha aqui monumentos, n?o ha historia antiga: a terra ? nova, e a sua prosperidade e crescimento datam de trinta ou quarenta annos, desde que o seu vinho come?ou a ter fama. Ja descahida do que foi, pela estagna??o d'aquelle commercio, ainda ? comtudo a melhor coisa da Borda-d'agua.

N?o tem historia antiga, disse; mas tem-n'a moderna e importantissima.

Oh gente cega a quem Deus quer perder! pois n?o v?des que n?o sois nada sem n?s, que sem o nosso alchool, d'onde vos vinha espirito, sciencia, valor, ides cahir infallivelmente na antiga e prigui?osa rudeza saxonia!

D'essas traidoras praias da Fran?a donde vos vai hoje o veneno corrosivo da vossa indole e da vossa f?r?a, n?o tardar? que tambem vos chegue outro Guilherme bastardo que vos conquiste e vos castigue, que vos fa?a arrepender, mas tarde, do criminoso ?rro que hoje commetteis, ? insulares sem fe, em abandonar a nossa allian?a. A nossa allian?a sim, a nossa poderosa allian?a, sem a qual n?o sois nada.

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