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Read Ebook: Cidades e Paisagens by Lima Jaime De Magalh Es

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Ebook has 229 lines and 22028 words, and 5 pages

JAYME DE MAGALH?ES LIMA

CIDADES E PAIZAGENS

CIDADES E PAIZAGENS

JAYME DE MAGALH?ES LIMA

CIDADES E PAIZAGENS

Jayme de Magalh?es Lima.

CIDADES E PAIZAGENS

Novamente em terras estranhas, com as velhas malas tisnadas ao sol de mil combates, isto ?, cobertas dos rotulos dos caminhos de ferro e dos hoteis, que lhes abrem no coiro espesso grandes chagas multic?res; com essas fieis companheiras que por mim pisaram todo o calvario dos omnibus e dos wagons e soffreram ?s m?os brutaes dos mo?os de gare, encontro velhas id?as, velhos programmas de viagem. N?o mudei: a bagagem ? ainda a mesma, exterior e interiormente.

N?o sei at? que ponto ser? exacta a distinc??o como attributo caracteristico de ra?a; ? certo por?m que em geral a podemos considerar verdadeira. A n?o ser que viajemos com um fim especial, o estudo de uma cultura, de uma arte, de um novo processo industrial, ou qualquer outro, ha apenas dois systemas de viajar, extremos de um dos quaes todo o caso particular sempre se aproxima: ou procuramos a abundancia e a riqueza de impress?es ou um limitado numero de aspectos e id?as geraes, pondo de parte os factos inuteis ? sua constitui??o.

Sobre o valor intellectual dos dois systemas n?o me parece poder levantar-se duvida; ha toda a distancia que vai da simples curiosidade ao pensamento. Um estampa, grava e guarda, no seu estado primitivo, as percep??es recebidas; o outro funde, relaciona, e tira um novo producto unico residuo duradouro e util.

Ora, devo advertir aos que tiveram a paciencia de me acompanhar at? aqui que desde longos annos me inscrevi na segunda das categorias que esbocei e n?o abjurei nem espero abjurar a primeira confiss?o. Temperamentos! J? v?, pois, o leitor o que p?de esperar d'estas breves palestras, escriptas de relogio em punho e sob a respeitavel auctoridade dos horarios do caminho de ferro; nem poderei despertar-lhe transportes de enthusiasmo, em segunda m?o, pelos quadros e monumentos notaveis, nem lhe contarei quantos viajantes me acompanhavam, nem como vestiam e dormiam, nem mesmo poderei dizer-lhe, e isso com verdadeira magua, se, realmente, n'esta parte da Europa que vou percorrer, ? lei universal de todas as hospedarias deixar ? noite os sapatos ? porta do quarto de dormir e encontral-os de manh? bem lustrosos de graxa. Nada d'isto terei tempo de dizer-lhe; apenas alguns factos e id?as muito geraes.

J? temos quanto baste de declara??es pr?vias para que possamos entender-nos; passemos pois ? viagem.

Do Porto a Salamanca o caminho ? bem conhecido. Atravessando o Minho, nas proximidades de Penafiel, p?de observar-se o aspecto bem differente do Minho suburbano e littoral, como a Maia e Rio Tinto, e o Minho interior, aproximando-se das montanhas. N'este, a vegeta??o nos valles ? mais abundante e vi?osa, talvez resultado do maior abrigo; os montes circumvisinhos s?o mais elevados e muito despidos, differentemente do que acontece no littoral onde as eminencias s?o bem povoadas de pinhal que desce at? ? margem dos campos. A casa caiada e branca, construida de argamassa e coberta de telha, deu logar ? cabana de pedra solta e de colmo, defumada e baixa. S?o de uma grande belleza as pequenas aldeias do interior do Minho; sombrias pela luz frouxa, pelo verde carregado da vegeta??o, pela c?r terrea dos montes escassamente povoados de urze, e pelo colmo e o granito das habita??es; mas ha no quadro uma grande harmonia de tons, deliciosas linhas pittorescas, e, na falta de arte, uma grande express?o, a que resulta da completa communh?o do homem e da terra. A aldeia e o homem s?o pouco, quasi nada, a confundirem-se com os milharaes e com os pampanos.

Do Minho passamos ? margem do Douro e ?s suas encostas devastadas pela phylloxera.

A meu v?r, a paizagem carece de belleza; a natureza menos consistente dos terrenos schistosos produz a molleza de contornos; e a cultura, fazendo dos montes escadarias, destruiu toda a harmonia natural e substituiu a paizagem, n?o por outra paizagem mas por cachos d'uvas em prateleiras. Alem d'isto, os valles s?o demasiado estreitos e falta por isso a distancia necessaria para v?r bem as montanhas.

S?o de uso e de bom gosto as lamenta??es sobre a sorte infeliz do Douro; e, de facto, os olhos menos penetrantes v?em alli a miseria e a destrui??o de uma opulenta riqueza que, nos seus melhores tempos, deu ao lavrador uma vida sumptuosa.

Mas est? o Douro perdido para sempre? E as florestas, e a acclimata??o de plantas novas e de novos animaes? Assim como a giesta cresce por aquelles montes, n?o haver? plantas exoticas de maior utilidade que supportem igualmente os rigores d'aquella regi?o? N?o t?m os lavradores um vasto campo a explorar na cria??o dos pequenos animaes como as aves e os coelhos? N?o seria possivel fazer grandes reservas das aguas que no inverno correm em torrentes pelas montanhas? Se me n?o illudo, os grandes males da regenera??o agricola do Douro n?o vem da sua natureza physica de que com arte necessariamente poderiamos tirar proveito; o grande embara?o ? a falta de instru??o e de capitaes. Para restituir ? cultura as suas terras agrestes e hoje em completo abandono, ? necessario que o lavrador saiba e possa; e, dado que viesse a saber em pouco tempo, quantos mil contos de reis n?o custaria a empresa?

Subindo sempre, entramos em Hespanha, e pouco depois, vinhas e olivaes e amendoeiras, tudo nos desapparece para nos internarmos em plena regi?o montanhosa. Nenhuma cultura, mas a paizagem ? granitica, cheia de grandeza, os contornos nitidos e arrojados. Seguem-se planaltos arenosos, cultivados na maior parte; rarissimas videiras, os cereaes dominam e, parece, formam o tronco, a parte essencial da lavoura, como, de resto, succede nas grandes eleva??es do nosso clima. As aldeias n?o s?o frequentes, mas os campos murados e extremamente subdivididos.

Sobreveio a noite. Pelos campos do Tormes, imagino que a paizagem n?o muda at? Salamanca, pois o que vim encontrar aqui ? em tudo semelhante ao que deixei, com a simples differen?a de que as hortas abundam, consequencia manifesta das proximidades de um mercado urbano.

Resta-me fallar de Salamanca, falta-me o tempo. De Paris conversaremos.

Salamanca ? uma cidade antiga.

As cidades antigas s?o como as grandes obras classicas que ora se encontram empoeiradas e amarellecidas na edi??o original, em que o texto e a f?rma conservam a harmonia e a exactid?o primitivas, ora se encontram nas edi??es modernas, annotadas, corrigidas, sob uma nova f?rma material, corrompidas e alteradas o mais das vezes at? se tornarem uma obra nova. S?o raras as velhas edi??es authenticas, e mais raras ainda essas outras especies de livros escriptos em pedra a que se chama cidades; porque, n'estas, as altera??es s?o constantes, dia a dia, lentas e immediatamente imperceptiveis. Quando assim n?o ?, a cidade morreu.

Salamanca, sem ter morrido, estacionou. ? como estes velhos enrugados, magros, tomando com exactid?o rigorosa as suas refei??es, o seu jornal e o seu passeio, agasalhados n'um casaco que nenhuma tesoura hoje sabe talhar, o pesco?o envolvido em gravatas cuja vastid?o nos assombra: vivem ainda e s?o todavia um documento do passado. Entre elles e as cidades ha uma differen?a apenas: as cidades podem rejuvenescer, os homens nunca.

As bilhas da agua d'uma f?rma tradicional, archaica; o trajar dos homens do campo, de cal??o e polaina de coiro, jaqueta e larga faixa, o collete curto com duas ordens de grandes bot?es de prata, a camisa sem collar, apertada com um s? bot?o de filigrana, o peito todo de rendas; os palacios d'outro tempo, com janellas de todo o genero, largos portaes em arco e as mais bellas ferragens, agora t?o infelizmente substituidas por informes pastas de ferro fundido; tudo nos transporta aos seculos passados e faz de Salamanca uma cidade interessante pelo valor instructivo, agradavel pelo desconhecido da impress?o e finalmente bella por uma certa harmonia de quadro antigo que a vida moderna n?o logrou apagar.

N?o quero especialisar. Era preciso ser artista e historiador e eu n?o passo de simples lavrador, viajando intellectual e materialmente com a mesquinha bagagem de estudante.

Uma ultima observa??o, antes de deixar Salamanca. Aqui, como em toda a Hespanha, abundam as c?res vivas no trajar; e os escriptores tem por norma basear n'este facto os instinctos artisticos do povo, comparando-o com o norte sombrio e melancolico. N?o ser? antes uma prova de barbarie? N?o demonstra uma inferioridade de sensibilidade physica e tendencia a s? perceber as c?res que ferem a vista com maior intensidade? Junte-se a isto um excessivo cuidado no penteado das mulheres, tendo sempre em vista que a ethnographia mostra que a necessidade do adorno precedeu a necessidade do agasalho, e teremos sobre que reflectir. Sobre que reflectir, note-se; ponho uma interroga??o, n?o fa?o uma affirma??o categorica.

Os primeiros campos que vi depois de Salamanca foram os de Miranda do Ebro; campos de calcareo, poeirentos, com uma vegeta??o frouxa, aldeias raras, distantes, escalavradas, denunciando uma vida estacionaria, a provincia bem sarjada de estradas e de ribeiros, ladeados de grandes choupos. Amiudam-se as aldeias, o campo e a habita??o tem certo aspecto de cultura, de ordem, de riqueza, de bem-estar, e entramos em Vitoria, uma cidade j? muito ? moderna, com boas ruas, casas altas e bem alumiadas, relvas, jardins, arvores e verdura em torno.

Alteram-se os dois quadros anteriores durante algum tempo, passa-se uma s?rie de tunneis. Estamos nos Pyren?os.

Os Pyren?os! A Suissa sem neve e sem grandeza, a vida abundante, tranquilla, cerrada como aquelles horisontes! Os casaes dispersos, uma grande paz, a aldeia n?o ? precisa, vive-se s?, os campos em volta da cabana, e em baixo, no curral, o ubere farto, generoso e inesgotavel das vaccas pacientes com grandes manchas brancas; ao lado o pomar, a macieira doirada de p?mos, em baixo o campo de milho, senhor feudal d'aquelles campos, latejando de opulencia e de vigor, pelas encostas os prados, e l? at? ao cimo da montanha a floresta espessa e baixa. A imagem da vida modesta, estreita, serena, sem miseria e sem paix?es.

Depois, at? ao cerrar da noite, os pinhaes sem fim da regi?o bordalenga e vamos acordar em Paris, Roma de uma nova Igreja a que preside um papa--a Devassid?o.

Dizem os economistas que a cidade substituiu a feira; ao mercado periodico e transitorio succedeu o mercado permanente. Se ha capital europeia que justifique este modo de v?r ? por certo Paris.

Nenhuma tem mais accentuado caracter de mercado, com barracas de todo o genero:--de espectaculos, de alimentos, de vestuario, de prostitui??o e de politica. Porque--por exagerada que pare?a a express?o, ? todavia verdadeira--a politica nos governos democraticos e representativos ? um mercado, a sua lei a concorrencia; todos s?o livres, todos s?o iguaes, e para entrar, para vencer, para lan?ar m?o do poder tudo ? licito e bom, a honestidade, o civismo e a intelligencia, e a lisonja, a intriga, a corrup??o e a sem-vergonha. Triumphos ephemeros! Apenas alguem trepou ao ultimo degrau tem atraz de si um exercito, uma multid?o, acotovelando-se, rasgando-se, batendo-se furiosamente, e o vencedor de hoje vai rolar amanh? na poeira ignorada e infecunda dos vencidos.

O governo politico da Fran?a contribuiu manifestamente para dar a Paris o seu caracter actual.

Dois elementos principaes formam uma cidade: o elemento governativo, o funccionario, o militar e a c?rte, e o elemento mercantil, o commercio e a industria. Theatros, museus, bibliothecas, palacios, esc?las, jardins, passeios e grandes ruas s?o a consequencia natural da existencia d'aquelles dois elementos; ou representam satisfa??es de prazer para uma popula??o ociosa, ou s?o condi??es de trabalho e instrumentos de estudo para a popula??o laboriosa: e, em qualquer caso, a sua vastid?o e grandeza derivam da necessaria propor??o que existe entre a intensidade da vida social d'um povo e os seus org?os. Acontece, por?m, que nos governos monarchicos, mais ou menos absolutos, ao lado do elemento mercantil, cuja norma ? a concorrencia e o lucro, est? um outro, igualmente poderoso e influente, que tem por norma a ordem, a sujei??o e a obediencia e sempre uma apparencia s?ria e grave, embora muitas vezes occulte sentimentos e caracteres intimos que o n?o s?o; e este ultimo elemento, temperando o que o primeiro tem de excessivamente grosseiro e palrador, dava ? cidade uns tra?os ligeiramente sombrios que, sem a tornarem triste, corrigiam o que porventura houvesse de demasiado estrepitoso e garrido. Ora a Fran?a, com a dissolu??o do segundo imperio, escreveu por toda a parte Liberdade, Igualdade, Fraternidade, varreu os ultimos restos de dependencia hierarchica, nivelou todas as profiss?es, o sabio, o politico e o mercador; e as institui??es sociaes e politicas, juntando-se ao caracter inquieto e vivo d'aquelle povo, abriram de par em par as portas de uma grande feira franca--Paris.

? concorrencia desenfreada n?o ha superioridade de especie alguma que resista; os mais bellos caracteres de ra?a, a lucidez, a alegria, os instinctos artisticos, a elegancia, a percep??o viva e prompta da f?rma e da c?r, aniquilam-se, pervertem-se. Vencer ? o fim ultimo e unico, e para l? chegar, a primeira coisa a p?r de parte ? a qualidade fundamental de todo o espirito s?o,--a sinceridade. Importa pouco ao estadista o seu proprio pensamento sobre as coisas politicas, n?o precisa tel-o, nem muitas vezes o tem; o essencial ? saber o que pensam aquelles por cujos hombros tem de trepar. Importa pouco ao artista e ao homem de letras ouvir a sua consciencia sobre o que ella lhe diz da belleza na obra d'arte; o essencial ? saber o que pasma e arrebata aquelles que h?o de pagar-lhe em incenso e ouro.

A vida consome-se febril e ardentemente, quasi heroicamente, n'um esfor?o ingente--chamar gente ? sua barraca.

Se houvesse de consultar os meus sentimentos sobre a vida de Paris cobriria estas folhas de lamentos; mas o critico escuta as vozes estranhas sem dar ouvidos ? sua voz intima, observa, descreve e classifica os phenomenos e as liga??es das coisas, esquecendo as suas aspira??es e desejos. Se por?m me ? permittida uma pequena desobediencia a lei, confessarei quanto me repugna esta inanidade de vida moral, e o desprendimento da natureza e de todas as for?as intimas e divinas que regem o homem e o mundo. Paris afigura-se-me uma fornalha de gelo, rubra como a chamma e fria como a neve; consome e n?o d? calor, como se um dia no p?lo todas as neves se incendiassem n'uma labareda ingente e em torno um frio agudo a prostrar na morte a humanidade.

Sempre a tyrannia do horario dos caminhos de ferro! Tinha ainda duas palavras a dizer de Paris, de Berlim, e da viagem at? aqui, mas s? em Moscow poderei fazel-o. J? me resignei a nunca trazer estas notas em dia.

Ao v?r os arredores de Paris, coalhados de jardins e de pequeninas casas tratadas com esmero, dir-se-hia que aquella gente conserva sempre vivo um grande amor pelo silencio e pela paz da natureza. Do pequeno burguez ao grande banqueiro, todos ambicionam a arvore e a fl?r, ou sejam em dois palmos de terra, comprados a peso de ouro, ou seja em vastos parques, tra?ados com arte e sabedoria; e ao domingo, o operario, o caixeiro, a legi?o innumera dos humildes vai a Saint Cloud, a Saint Germain, a Enghien, ou a qualquer outro arrabalde, onde tenha um retalho de relva e um farrapo de sombra para deitar-se um momento.

S?o por?m levados pelo amor da terra? N?o s?o. Todas as grandes cidades t?m ao lado estes ninhos de verdura onde nas horas de ocio se acoita a popula??o extenuada e anemica; s?o uma necessidade hygienica, dependencias obrigadas, como os theatros, os museus e as esc?las. Mas o que ahi se procura n?o ? a satisfa??o d'um sentimento ha muito perdido no tumulto das ruas e na anciedade de enriquecer e gozar; procura-se saude, recuperar for?as, um tonico, um alimento substancial, especie de ferro e de extracto de carne.

Transportam-se para o campo os habitos da cidade, n?o se vai para o campo a fugir da cidade; e na arvore mysteriosa e sagrada n?o se adora um deus que o cerebro exangue j? n?o percebe nem sente, v?-se uma pomada, um balsamo que d? frescura e vigor ? pelle, abrazada por um ar empestado e por uma actividade excessiva. A cidade ? uma fornalha, o campo um hospital.

Duas coisas admiro todavia n'uma cidade como Paris--a organisa??o e a intensidade do movimento, e o poder instructivo.

Ha qualquer coisa de assombroso n'este rio immenso em que simultaneamente se agitam e movem tantissimas correntes sem se aniquilarem; toda a grandeza da antiguidade ? mesquinhez ao seu lado. De longe em longe, um desastre, uma pequenina mola que se partiu, um abalo ligeiro, quasi imperceptivel. Que foi? Um incendio, um naufragio, uma guerra, quinhentas, mil ou trezentas mil pessoas que desappareceram. Um movimento de espanto: a grande corrente n?o p?ra, segue no seu leito tenebroso e revolto, e nas nevoas espessas da sua vastid?o sumiu-se ephemera a hecatombe que por longos annos faria estremecer de horror a velha Roma.

A vida patriarchal e simples p?de gerar todos os sentimentos bons e abrir ao espirito horisontes sufficientemente largos para lhe despertar o desinteresse de descobrir a ordem e as leis das coisas; mas, por isso mesmo que ? simples, equilibrada e serena, nunca poder? suggerir-lhe no??es dos typos excentricos. Para attingir estes pontos extremos ? necessario levar o espirito a um estado de vibra??o nervosa que n?o ? outra coisa sen?o a loucura em differentes graus; e os casos d'essa ordem, esporadicos nas civilisa??es passadas, s?o frequentes e quasi normaes na vida febril contemporanea. ? n'este sentido que reputo muito alto o valor instructivo das cidades, que nos vicios, na miseria e nas paix?es mostram uma complexidade e largueza da alma humana que em outras condi??es se n?o v?em, por isso que n?o existem. Por este lado, a cidade moderna tornou-se um estudo essencial ao philosopho, ao poeta e a todos os que por qualquer motivo tem de lidar com os phenomenos psychologicos; as obras d'aquelles que porventura carecerem d'este elemento ser?o necessariamente incompletas e imperfeitas.

De Paris fui a Berlim. Parti ? noite, amanheceu-me nas proximidades de Li?ge e logo alli encontrei duas coisas que n?o temos e que deveriamos ter,--a lavoura feita por cavallos,--n'uma terra polvilhada de branco. Nem lavramos com cavallos, nem usamos esses p?s brancos que s?o adubos mineraes.

A utilidade d'estes n?o padece duvida e, se os applicamos em t?o limitada escala, n?o ? por que geralmente se ponha em duvida o seu proveito; mas as condi??es legaes e economicas do fabrico acarretam falsifica??es e pre?os que fazem recuar o nosso lavrador, e com raz?o. Que o estado d? garantias de genuinidade e estabele?a um regimen que abaixe os pre?os at? os tornar accessiveis ? nossa lavoura, e tenho por seguro que os adubos mineraes ter?o entre n?s t?o larga e proveitosa applica??o como nos paizes estrangeiros. Fora d'essas condi??es ? inutil pr?gar melhoramentos agricolas; a lavoura, mesmo sem contabilidade, arruina ou enriquece e, sendo uma industria e n?o um capricho, s? no ultimo caso poder? viver.

Sobre o segundo ponto, a introduc??o do cavallo como principal motor agricola, divergem os lavradores, e s?o-lhe contrarios na sua grande maioria, exceptuando o Alemtejo, em que o clima obriga ao servi?o por muares. Todo o norte por?m classificar? de utopia o meu pensamento. Porque? Nenhuma raz?o economica bem fundamentada se allega; o unico motivo ? de natureza historica, a tradi??o e o habito. Reconhe?o-lhe a grandeza, sei o que vale como factor da educa??o do operario: p?de muito em todo o mundo, vale muitissimo n'uma terra em que a educa??o agricola ? exclusivamente caseira. Mas se a aptid?o e os conhecimentos do operario nos incitam a proseguir na rotina, a concorrencia imp?e-nos tentativas de reforma. Todos os paizes estrangeiros praticamente adoptaram esta f?rma de divis?o de trabalho agricola, o gado cavallar como motor, o gado vaccum para a carne e para o leite. ? um caso de divis?o de trabalho e nada mais; essencial, a meu v?r, porque para supportarmos a concorrencia e voltarmos aos tempos aureos da exporta??o de gado, ? manifestamente necessaria a melhoria das ra?as; e uma das suas condi??es ? um bom regimen hygienico de que faz parte a singularidade do destino do animal. Trabalho, engorda e leite ser?o sempre mediocres emquanto forem individualmente simultaneos.

Pouco e pouco vai decahindo de intensidade a paizagem agricola, perdendo ao mesmo tempo em belleza; atravessam-se regi?es sem caracter em que a granja aceiada e o campo verdejante ladeiam a cabana na terra descuidada e inculta; s? adiante, internando-nos na Allemanha, encontramos um novo typo. Estamos perto do Hanover, se me n?o illudo; o campo ? vasto, ligeiramente ondulado, quasi plano, mediocre, sem fartura nem esterilidade; as casas de lavoura espa?osas e sombrias com os seus altos telhados de ardosia destacando frouxamente no c?o nublado; com os prados alterna a floresta de lamigueiro escura, fechada, a folhagem tingida de negro, os ramos erectos. A vastid?o, sem luz, sem brilho, pesada, asphyxiante! Preoccupa??o scientifica ou evidencia de rela??es, prendemos o caracter d'este povo ao aspecto da sua terra. Resta saber se ha sabedoria capaz de fazer partilha entre a natureza e a historia.

Sempre attento ?s coisas agricolas, para que me levam velhos e enraizados affectos, ao v?r como aqui se alternam o prado e o arvoredo, lembrei-me do mediocre resultado que temos tirado das poucas tentativas de crea??o de prados e do nosso despovoamento florestal. Ha entre a floresta e o prado uma rela??o intima e manifesta; e n?o ser? talvez ousadia affirmar que este ultimo s? poder? viver inteiramente s?o sob o bafejo da arvore, t?pido e humido. As condi??es climatericas favoraveis aos pastos s? poder?o alcan?ar-se pelo repovoamento florestal, principalmente nas regi?es do interior, ao abrigo das brisas e orvalhos maritimos.

Em Paris deixamos uma feira; todas as cidades mais ou menos o s?o, porque isso ? da sua essencia, dentro de termos entre os quaes oscillam. O ponto da escala em que se encontram determina o seu caracter. Ora, suppondo que esses termos ultimos s?o o estado-maior da politica e a feira, quem vier de Paris a Berlim cahiu de um no outro extremo.

? vozeria da rua, ? confus?o dos preg?es e ao labutar dos mercadores succede o aprumo dos continuos e um caminhar pausado e surdo sobre tapetes, cortado de breves notas estridentes, ao sacudir das esporas.

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