Read Ebook: Vamiré: Romance dos tempos primitivos by Rosny J H A N Figueiredo C Ndido De Translator
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Ebook has 649 lines and 27222 words, and 13 pages
Vamir? inquietava-se e encantava-se com isso: achava-a assim mais am?vel, e repetia, com menor convic??o:
--Vamir? ? o mais forte!--
Os perseguidores aproximavam-se: era necess?rio recome?ar a fuga.
Vamir? retomou a dianteira que levara, e pareceu ent?o evidente que os outros, e n?o ele, cansariam primeiro. Demais, os perseguidores, que at? ent?o corriam juntos, come?aram a desunir-se, e tr?s ou quatro apresentavam-se muito fatigados para prosseguir. Os outros conservavam-se quase em grupo, sem que nenhum curasse de se adiantar aos companheiros, dominado pelo misterioso da aventura e pela estatura elevada e agilidade extraordin?ria do dolicoc?falo.
Ia-se entretanto extinguindo o dia. Era a hora da cor de jalde. Na plan?cie, um sil?ncio sem vibra??es, uma atmosfera melanc?lica e fresca, um est?dio de repoiso.
Os o?sis esparsos difundiam vida em torno de si; os nem?ceros voavam em altas colunas por cima das superf?cies h?midas; por toda a parte despertava um fr?mito euf?nico, balbucia??es de p?ssaros. Hora de seguran?a e bem-estar, em que os animais diurnos n?o tinham que recear o vaguear das feras, hora em que os grandes ruminantes se deitavam na plan?cie com uma seguran?a encantadora, e em que alguma coisa do vi?o matinal voltava, ao cair do dia.
A corrida de Vamir? tornava-se frouxa e dif?cil; mas, atr?s dele, a persegui??o parecia abandonada.
Na extrema do horizonte, o vulto dos archeiros fora-se esvaindo; e debalde o ca?ador procurou avist?-los, subindo a um montijo. Descansou pela segunda vez, poisando a desconhecida.
Esta, melanc?lica, quedou-se de p?, ao lado dele, compreendendo a inutilidade de qualquer tentativa de fuga.
Quanto a ele, sentia-se agora muito fatigado para exprimir o seu triunfo, e inquietava-se por ver que n?o poderia recome?ar a corrida. Consolava-o contudo a ideia de que os seus perseguidores deviam estar tamb?m extenuados.
E ficaram ambos silenciosos.
Chegava o crep?sculo. Com uma lentid?o majestosa, os mundos do colorido iam-se apagando sobre o Poente, e Vamir? estremeceu, vendo a sua companheira inclinar-se, estender os bra?os para o horizonte e falar ao disco do sol. Filho dos ocidentais n?o hier?ticos, vagamente supersticioso mas sem culto, n?o compreendia o acto da oriental e olhava-a com curiosidade, com inquieta??o talvez.
Quando ela terminou, demoraram-se ainda algum tempo, at? que a lua se ergueu.
--Vem,--significou Vamir?.
Ela compreendeu o gesto e, sem resist?ncia, marchou ao lado dele. Depois, na solid?o da noite, enquanto o lobo e o chacal come?avam a uivar sobre as estepes, ele era um apoio. A estrangeira admirava profundamente a grande clava do ca?ador, lan?ada ao ombro e fixada por ligaduras. Era j? um principio de intimidade, de confian?a, de resigna??o mais calma. Mas Vamir?, cheio de cansa?o, n?o tinha o ardor de pouco antes, esgotado nas suas art?rias o sangue de Maio, cheio de poderosas mol?culas.
Marcharam por muito tempo os dois vultos, enquanto subia a lua pr?-hist?rica. Come?ava a estepe a cobrir-se de mais numerosos o?sis; as ?rvores, multiplicando-se em moitedos, anunciavam a proximidade da floresta; os raios do luar incidiam mais prateados sobre as ervas, e Vamir? entendeu que a sua companheira devia ter fome e sono. Ele tinha sobretudo sede.
--Descansa!--disse ele; Vamir? vai ca?ar.
Ela assentou-se, submissa. Era debaixo de tr?s figueiras silvestres, robustas e cheias do perfume da primavera. O sonho infiltrava-se por entre as ramarias, o eterno sonho da lua e das constela??es; e a filha dos orientais entregou-lhe a sua alma confusa. Sonhando, percebia a fragilidade do seu ser; a sua fam?lia e a sua tribo, o lar?rio da noite, os sacerdotes, os rebanhos de bois asi?ticos, povoavam-lhe a mente e torturavam-na at? as l?grimas; mas, ali sozinha, n?o chegava a odiar o homem que a roubara, antes o considerava como barreira ?nica diante da noite formid?vel.
Vamir?, na plan?cie observava atento o horizonte. Perfis de felinos apareciam a espa?os. Muito ao longe, um cerv?deo ia fugindo. Mas eis que um lobo, de focinho erguido, se aproxima das tr?s figueiras; quase ao mesmo tempo, saltou assustado um animalzito, uma lebre.
Postado em linha obliqua, Vamir? esperou o ponto em que lhe ficasse mais pr?xima a carreira dela; depois, a sua zagaia ergueu-se, sibilou, e o pequeno animal rolou entre as ervas. Ao salto do ca?ador, o lobo fugiu e Vamir? foi apanhar a lebre.
Esfolou-a rapidamente e suspendeu-a de uma fran?a. Depois, ajuntando ramos e ervas secas, tirou de um saquete o s?lex com que os dolicoc?falos faziam lume, estendeu as fibras mais secas e fez saltar centelhas.
Depois de algumas tentativas, a chama levantou-se, pequena ao principio, mas avivada depois por mancheias de combust?vel, acertadamente dispostas, e a lebre come?ou a assar-se.
A asi?tica, ? vista do lume, inclinou-se, como fizera diante do sol poente, e com igual melopeia de palavras.
Vamir?, impass?vel, acabou de assar a lebre. Depois, convidou a sua companheira, e ambos comeram em sil?ncio.
A refei??o foi breve. O cansa?o de um e a como??o de outra n?o lhes permitiam comer muito; mas atormentava-os uma viva sede: era mister prosseguir na marcha at? se achar ?gua.
Puseram-se em marcha, e, antes de mil passos, Vamir? come?ou a ouvir o murm?rio de ?guas e, logo ap?s, avistou um regato, onde se dessedentaram.
--Dormir!--deu a entender o homem.
Ela compreendeu o gesto. Perturbou-se, perscrutou Vamir?, que, ? palidez do luar, tinha um aspecto triste, abatido, nada feroz. Sentou-se ent?o contra um vidoeiro e, um tanto receosa ainda, entrecerrou as p?lpebras, em luta com o cansa?o. A natureza dominou-a, e ela cedeu ? semi-morte quotidiana.
Sentado ? beira do regato, Vamir? contemplava as facetas da ?gua, as ret?culas da vegeta??o, as ombreiras dos salgueiros interpostos diante da lua.
Pelo seu c?rebro vagueava um devaneio vasto e tranquilo como a noite. Amortecido pela fadiga, toda aquela aventura se lhe esbo?ava em notas lentas, profundas, eternas. A ascens?o da lua, o uivo dos animais, o murm?rio dos fluidos, os fantasmas arborescentes erguidos na plan?cie, pareciam conceder-lhe o tempo e o espa?o. Por ter trazido consigo a donzela, parecia-lhe sua, como a pele do espeleu, que lhe pendia dos ombros.
Mas o firmamento come?ou-lhe a vacilar, as ?rvores iam-se transmudando em fisionomias movedi?as. Por sua vez, Vamir? sentiu o ambiente pesado, o seu ser retra?do e as suas carnes cedendo ao repoiso. Deu vagamente alguns passos por baixo do vidoeiro, segurou com a m?o a veste da adormecida e estendeu-se sobre as ervas.
Correu tempo. A lua come?ou a declinar e estava a menos de trinta graus do horizonte, quando Vamir? despertou.
Com um lance de olhos, assegurou-se da presen?a da sua companheira e p?s-se de p?, observando a plan?cie. Mas nada viu de duvidoso, e concluiu que os perseguidores tinham desistido do intento ou que a sua fadiga, maior que a dele, os condenara ao repoiso.
Como se sentia bem disposto e com as for?as restabelecidas, resolveu aumentar ainda aquela boa disposi??o e p?r-se a caminho.
Restava um peda?o de lebre; partiu-o em dois e comeu um. Depois, tendo refrescado a cabe?a no regato, ficou, por alguns minutos, contemplando a adormecida.
Estava estendida agora sobre o solo. A delicada cabe?a apoiava-se no cotovelo. O seu corpo, dobrado em ziguezague, tinha um estranho encanto, que alvora?ava Vamir?.
Uma onda de sangue rugiu nas fontes do ca?ador; reaparecia nele o instinto selvagem.
O homem abaixou-se. Mas que instinto ou que do?ura po?tica o fez erguer, cheio de piedade?
Incapaz de a analisar, sem que ela por isso o impressionasse menos, acordou a sua companheira, tocando-lhe levemente. Ela ergueu-se lentamente, assustada, estremunhada. Depois, readquirida a percep??o das coisas, ficou triste e estendeu um olhar sombrio ?s estepes lunares, ? queda avermelhada do astro nos abismos ocidentais. Entretanto, foi-a invadindo uma vaga satisfa??o, pois que o dia se aproximava, e as suas carnes vi?osas eram uma invoca??o ? felicidade.
De maneira que n?o recusou a ligeira refei??o, oferecida por Vamir?, e at?, renascendo-lhe o apetite, sentiu prazer em mordiscar a coxa assada da lebre. O ca?ador, encantado, admirava-lhe os dentes de lobo, a cabeladura desprendida ao longo do pesco?o; e n?o sei que sentimento de maternidade se mesclava ao amor crescente do mo?o pr?-hist?rico.
Furtivamente, de olhos baixos, ia-se ela acostumando ? presen?a do ca?ador, achava-o mais belo e mais robusto ainda do que na v?spera, mas; a sagrada recorda??o da tribo interpunha-se aos dois e enchia-a de saudades.
A persegui??o
Pouco depois do alvorecer, Vamir? e a sua companheira chegaram enfim ao rio.
A abandonada canoa l? estava ainda na moita onde ele a escondeu: teve s? que tom?-la aos ombros e p?-la a nado. Mas quando nela quis meter a estrangeira, esta manifestou violenta repugn?ncia. Foi quase preciso empregar a for?a. Entretanto, desde que ela se viu embara?ada, voltou-lhe a resigna??o, o seu fatalismo de oriental.
Vamir?, acompanhando a margem, por onde a corrente era mais branda, p?s-se a navegar rio acima, lentamente.
Era deliciosa a hora, os raios do sol obl?quos, e toda a natureza rejuvenescia nas estepes. ?rvores mais numerosas anunciavam a proximidade da floresta, e Vamir? esperava chegar l?, antes que o sol estivesse a meio caminho do z?nite.
Mas haveria apenas meia hora que ele pangaiava, quando teve um rebate. O seu olhar perspicaz descobria al?m, na plan?cie, uma multid?o confusa de homens ou animais. Minutos depois, n?o restava duvida: eram homens parecidos aos perseguidores da v?spera e provavelmente os mesmos. Gra?as ao cortinado das ?rvores, Vamir? tinha a vantagem de que eles n?o descobririam prontamente a canoa, ao passo que ele, pr?ximo dessas ?rvores, cujos intervalos lhe serviam de observat?rio, estava em posi??o de lhes seguir os movimentos pela plan?cie inclinada que levava ao rio.
Demais, n?o traziam pressa; paravam ami?de, e desde logo percebeu o n?mada que eles lhes seguiam a pista, com todas as paragens inerentes a este modo de perseguir.
Vamir? n?o descobriu a impress?o ? sua companheira, e come?ou a pangaiar com mais ardor, no intuito de atingir a floresta e desembarcar na outra margem. Mas, ap?s alguns minutos, a rapariga avistou por sua vez os que a procuravam, e a sua fisionomia animou-se. Soltou uma exclama??o, e, voltando-se para o seu raptador, dirigiu-lhe um olhar suplicante e humilde.
Vamir? baixou os olhos, comovido. Mas depois veio-lhe o despeito, uma resolu??o rude, que lhe fez dizer, como na v?spera:
--Vamir? ? o mais forte!--
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