Read Ebook: O Christão novo Romance Historico do Seculo XVI by Macedo Diogo De
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Ebook has 723 lines and 28964 words, and 15 pages
Absorvido em estranhos pensamentos ia elle no seu caminho quando lhe surdem inesperadamente de cara tres vultos agigantados.
Em seguida sentiu no peito a lamina de dous punhaes e certamente o seu corpo ficaria sem for?as e sem vida se os punhaes n?o resvalassem no a?o finissimo de uma cota de malhas.
--Covardes! gritou Dom Luiz ao mesmo tempo que desembainhava a espada e que se poz em guarda.
Immediatamente se crusaram tres espadas contra uma.
Era em extremo fino e destro no jogo das armas brancas Dom Luiz de Beja. Mas os seus adversarios mostravam-se lestos e ageis tambem. Al?m d'isso ajuntavam-se tres contra um. N?o podia ser mais melindrosa a posi??o do infante.
Por fortuna, quando j? o suor lhe escorria pelas barbas e principiava de debilitar-se-lhe o pulso, eis que um novo personagem se intromette na peleja.
Depressa c?e por terra o mais alentado dos aggressores e os dous restantes, naturalmente com receio da morte, poseram-se em immediata e vergonhosa retirada.
--Obrigado, meu amigo, agradece o infante no momento em que aperta com fraternal reconhecimento a destra do seu salvador.
Por causa das sombras da noite n?o se lhe distinguiam as fei??es: poder-se-hia divisar apenas que era fransino do corpo e que lhe relusiam os olhos como a chamma de um lampadario.
Sorriu-se ouvindo os agradecimentos e, talvez com tra?a de se esquivar a novos protestos de gratid?o, pretendeu retirar-se. O infante por?m agarrou-lhe meigamente o bra?o e pediu-lhe que o acompanhasse.
Pouco adiante, a confinar com o adro de San Domingos, elevava-se em um angulo meridional do Rocio uma elegante e vistosa casaria.
O infante bateu de rijo com os copos da espada tres pancadas no portal e a porta franqueou-se-lhe minutos depois.
Ambos subiram os degraus de uma escadaria resguardada de tapetes e depressa alcan?aram assim o primeiro andar da casa.
Introduziu-os um domestico em uma sala de paredes vistosamente forradas de ricos pannos de Arras e toda mobilada com largas cadeiras cobertas de seda escarlate.
D'esta sala passaram a um gabinete de exiguas dimens?es onde a seda, o brocado, as rendas e os cristaes de Venesa offereciam ?s vistas um aspecto encantador.
Mais adiante abriu-se-lhes um sal?o da mais requintada opulencia. Tudo ahi re?umava riquesa e bom gosto. Julgar-se-hia logo a perfumada recamara de uma princesa.
Os reposteiros foram talhados de uma preciosa fasenda da Persia que Dom Affonso de Noronha mandara recentemente nos gale?es das Indias. N?o eram as tape?arias que cobriam o soalho de menos valor e variedade. Por toda a parte macios coxins estofados de seda asul e franjados de ouro. Alguns quadros que representavam as viagens de Dom Henrique e as descobertas de Vasco da Gama, pendiam das largas paredes. Varias figuras da melhor porcelana da China se viam aos recantos do sal?o sobre dous elegantes bufetes com esmero trabalhados de madeira de ebano. Mil outros objectos de porcelana, prata e marfim decoravam finalmente com luxo oriental aquella mans?o de fadas.
Trajava um vestido de lhama asul guarnecido com alamares de passamanes de prata e ouro, decotado a modo de revelar todo o seu alvo pesco?o e tam curto das mangas que se lhe viam quasi todas as rosadas carnes do seu bra?o.
Poucos pintores estudaram ainda tam bello perfil e mais alegre figura.
Eram, como dous astros de amor, cheios de ternura e limpidez os seus olhos castanhos. N?o havia m?os de mais fina epiderme nem dedos de mais esmerada estructura. O contorno do nariz n?o cedia em perfei??es aos das estatuas gregas que representam a deusa das gra?as e dos amores. Os labios, feitos das petalas de uma rosa, possuia-os tam frescos e delicados que pareciam de uma crian?a.
Quanto n?o valiam os seus sorrisos e que thesouros de ternura n?o encerravam as suas fallas!
Era alta do corpo e franzina da cintura, como devem ser, ? semelhan?a das primorosas estatuas de Praxitelles e de Phidias, esse ideal das artes plasticas, os contornos e propor??es das rainhas da bellesa. Mais nutrida que magra assim nos bra?os como no rosto e, para mais se accenderem cubi?as, da arca do peito avolumava-se-lhe o contorno dos lacteos pomos de que Tasso e Cam?es nos fizeram a descrip??o.
Passava j? dos trinta e seis annos de edade e comtudo ninguem lhe calcularia acima de vinte e cinco primaveras: primaveras superabundantes de rosas e frescura, porque uma eterna juventude ? algumas veses privilegio das mulheres formosas!
Imprimiu-lhe o infante um doce beijo na m?o esquerda e, apontando para o pagem, lhe disse risonhamente:
--Apresento-vos, minha querida Violante, um bom amigo que ainda ha pouco me salvou os dias da vida.
O pagem conservou-se em mudez. Possuido de uma agradavel commo??o, ajoelhou aos p?s da formosa dama e n?o p?de elle evitar que dos seus olhos negros se escoasse uma lagrima de praser.
Violante Gomes estreitara-o nos bra?os de fada e com palavras divinamente repassadas de do?ura lhe rumorejou:
--Deus vos recompense o bem que fiseste.
Disp?z-se ent?o a contar-lhe o infante o que se passara.
A narra??o foi simples e curta. Poupou todas as c?res da fantasia e do romantismo. N?o se lhe ouviu sequer uma accusa??o contra os sicarios nem contra a pessoa que lhes commettera a empresa.
O pagem depois tomou a palavra n'estes rapidos termos:
--Dom Luiz ? denodado em demasia. Se lhe presaes a vida, minha senhora, deveis aconselhar-lhe que n?o a exponha tanto. Inimigos poderosos lhe sobejam...
--Talvez que s? Deus o possa defender! exclamou Dona Violante.
--Deus, acrescenta o Prior do Crato, Deus e a minha espada e os meus amigos tambem. Que ha traidores no mundo sei-o eu; mas que se guardem, que se guardem bem os traidores!
--Guardam, guardam... N?o v?des como apenas mostram elles o bra?o e o punhal?
A esta allus?o da formosa dama logo vaticinou o pagem:
--Decerto n?o falta um vil?o que a troco de alguns ducados assassine o principe Dom Luiz!
--Mas que empenho haver? n'isso? Dizei-o, que v?l-o supplica Dom Luiz de Beja!
--Ousaes assim calumniar el-rei! com animo exaltado replicou o infante. Bof? que, se vos n?o devesse a minha vida, diria agora que... ensandeceste.
--Rogo-vos modera??o, acudiu a dama. Falla o que sente e o que sabe este generoso mancebo. Oxal? sejam imaginarios os seus receios; mas n?o sei que triste presentimento me leva a cr?r que algum infortunio nos amea?a...
Sorriu-se o pagem com essa express?o de interna melancolia que n?o se descreve nunca. Em seguida volveu-se para o infante.
--Perd?o... mil veses perd?o se vos offendi! lhe disse.
Abra?ou-o o infante com o espirito sinceramente commovido. Descobrira no pagem um tal caracter de franquesa e um certo cunho de verdade que desde logo se lhe afigurou ninguem ser digno de maior estima.
? primeira vista mostrava-se repugnante a phisionomia do pagem. Predominava n'elle o sangue das ra?as selvagens do Oriente. Era negra como aseviche a pupilla dos seus grandes olhos e essa pupilla parecia tarjada de um leve circulo de sangue. O nariz era chato alguma coisa e alguma coisa largo das asas; a c?r da pelle bastante acobreada e os bei?os grossos sem desar. De idade n?o contava mais de vinte e dous annos, mas na agilidade dos musculos e na vivesa do espirito poucos ou nenhuns cavalleiros o excediam.
Nascera no paiz dos badages e ali f?ra, em companhia de seus velhos paes, convertido ao christianismo pela palavra e pelo exemplo de Antonio Criminal. Quando os badages degolaram este malaventurado jesuita foi tamanho o horror que a pobre crian?a concebeu pelo seu idolo Trichandur que nunca mais quiz lembrar-se do seu paiz natalicio. O vice-rei Jorge Cabral conhecera-o em G?a, criara-lhe amisade pelas boas prendas que em todo elle descobrira e embarcou-o para Lisboa no seu regresso em 1550.
O pagem, embebido nos perfumes de um ambiente de delicias, agora n?o se fartava de contemplar a peregrina formosura de Dona Violante. Nunca nos sal?es da c?rte lhe fascinaram os olhos princesa de f?rmas tam correctas, de maneiras tam delicadas e conversa??o mais suave. O terno e melodioso accento com que fallava insinuava-se meigamente nos cora??es como se fossem harmonias do ceu. Superabundavam-lhe bellesas assim no corpo como na alma. Talvez porque o acaso lhe denegara a nobresa do nascimento, concedera-lhe Deus todas as mil prendas que no mundo servem de apanagio e de cortejo ? gra?a e ? formosura.
Dona Violante fez-lhes servir aos seus dous hospedes, em ricas bandejas de prata, alguns doces e licores. Depois, a rogo do infante, passou com agilidade os seus pequeninos dedos pelas cordas de uma harpa e com ternissimas inflex?es come?ou de cantar o bello soneto em que Luiz de Cam?es define o amor:
Amor ? um fogo que arde sem se v?r; ? ferida que doe e n?o se sente; ? um contentamento descontente; ? d?r que desatina sem doer.
Logo que terminou levanta-se o gentil prior com todo o carinho a apertar-lhe os bra?os em volta da cintura e com labios de fogo imprimiu-lhe nas rosas do collo um osculo fremente.
--S?o estas as unicas venturas da minha alma! revelou elle ao pagem. N?o v?s como ella ? formosa? Algum dia te contarei como nasceram estes amores...
RECOMPENSA DO CRIME
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