Read Ebook: Alexandre Herculano by Lima Jaime De Magalh Es
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Ebook has 211 lines and 40393 words, and 5 pages
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Essas riquezas abandon?ra o apostolo, para partilhar com os homens dos bens que no seu peito abundavam. Os homens desconheceram-nos. Para que pois privar-se de beneficios preciosos, sem proveito do sacrificio para os desvairados no tropel da ruindade impenitente?!... N?o ignorava, quando desceu aos mercados da cidade, nem a fortuna incomparavel da solid?o nem a profundeza do esqualido tremedal onde ia arriscar a sa?de do corpo e a paz do espirito, para estender a m?o aos desventurados que n'elle se afogavam; mas incitava-o e arrebatava-o a esperan?a de levar opulentissimos thesouros aos estranhos que tanta miseria soffriam. Destro?ada a esperan?a pelos repetidos vendavaes da desillus?o, voltava ao ermo a que jur?ra fidelidade antes de se empenhar no combate. Ao fim de incerta jornada, o peregrino vinha cumprir a promessa que ao partir fizera nos altares da sua cren?a, da verdadeira patria dos seus sonhos, onde tinha em recompensa a liberdade.
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De facto, libertou-se. E, libertando-se, em toda a sua magestade se mostrou, na atmosphera a que anciosamente aspirava, f?ra d'aquell'outra que o desfigurava pela incessante coac??o das suas energias caracteristicas.
Pouco indulgente com a sensualidade, porventura deshumanamente rigoroso com os seus impulsos, a solid?o e a vida rural n?o seriam para Alexandre Herculano isen??o de fadigas physicas e desenlace d'aspira??es naufragadas, adormecimento de m?goas e repouso n'uma animalidade cuidada, bem mantida, satisfeita e robusta. N?o seriam uma festa lauta dos sentidos, por demais castigados da escurid?o da cidade, mas uma devo??o gratissima do espirito desonerado de temporalidades que o mortificavam, t?o pesadas pelo tumulto e press?o ininterrompida, como estereis pela inanidade das consequencias moraes. Amando o ermo e procurando-o, n?o o chamava a delicia pag?; se tanto lhe queria, era por obediencia religiosa, porque alli melhor interpretava e cumpria a vontade do Senhor. O sentimento da alegria e equilibrio no pulsar livre da natureza, a contempla??o da harmonia e belleza das formas que por si vivem como divindades independentes e distinctas, s? por excep??o prenderiam Herculano. ? um accidente raro, muito raro, que elle se quede com sympathia a escutar nymphas do rio, dryades da floresta e as felizes gentes dos reinos de Apollo. Por duvida teria condescendido em attentar nas crueldades e exalta??es orgiacas das esta??es e dos astros. Se por elle passaram faunos e bacchantes ou lhes suspeitou os folguedos, voltou o rosto descontente; os olhos habituados a luz divina, vinda dos c?us, e outra n?o procuravam, n?o supportariam fumo e labaredas, ateiados com o sangue e erguidos dos infernos em que penam condemnados. Mal sorriu ao carvalho magestoso que encontrou em meio do valle.
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e o quadro captivou-o um rapido instante. Que encanto de formosura, perfume e gentileza e c?r! Outros eram, por?m, os enlevos do poeta, que n?o esses, candidos, sem duvida, na sua gra?a, mas fugitivos e pereciveis, de perto vigiados pela enfermidade e pela corrup??o. A fecundidade da imagina??o, a riqueza de conhecimentos e a expontanea intensidade da atten??o todas as rela??es dos seres e todos os estados da alma lhe representariam, d'ascetismo ou de expans?o; mas o arrebatamento religioso n?o lhe consentia identificar-se sen?o com aquelles que traduzissem nos mais elevados modos o dominio e amor d'essa vontade omnipotente e omnipresente, de summa sabedoria, que tudo ordenava e a quem tudo obedecia, na verdade Deus e Senhor, como o poeta lhe chamou, invocando-a para o guiar e consolar, deus pela magestade e virtude infinita, e senhor pelo imperio sem limites na vida do universo.
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O apostolo tinha jurado a sua f?. <
Antes por?m da liberta??o extrema, o crente teria de experimentar as tenta??es da impiedade e n'esse combate succumbir ou armar-se, invencivel, para o ultimo triumpho.
Alexandre Herculano passou pelo baptismo pessimista. N?o lhe poupou o destino o transe supremo, que ? prova??o da grandeza, e perante o qual succumbiram ou se desvairaram nobilissimos espiritos do seu tempo. S?mente o soffre quem entreviu reinos sublimados de pureza e, para os alcan?ar, lan?ou o v?o que invariavelmente o mundo corta, na sua miseria eterna, com crueldade e escarneo. E ent?o a d?r ? t?o aguda e funda que ainda os mais fortes muita vez lhe preferiram a rendi??o total e ultima desgra?a, entregando-se, exultando, a quem os remisse do supplicio e lhes desse a paz, anjo ou demonio que se lhes apresentasse.
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< Doce m?e do repouso, extremo abrigo De um cora??o oppresso Que ao ligeiro prazer, ? d?r cansada Negas no seio accesso, N?o despertes, oh n?o! os que abominam Teu amoroso aspeito; Febricitantes que se abra?am, loucos, Com seu dorido leito! Tu, que ao misero ris com rir t?o meigo, Calumniada morte; Tu, que entre os bra?os teus lhe d?s azylo Contra o furor da sorte; Tu, que esperas ?s portas dos senhores, Do servo ao limiar, E eterna corres, peregrina, a terra E as solid?es do mar, Deixa, deixa sonhar ventura os homens; J? filhos teus nasceram: Um dia accordar?o d'esses delirios, Que t?o gratos lhes eram. E eu que v?lo na vida e j? n?o sonho Gloria nem ventura; Eu, que esgotei t?o cedo, at? ?s fezes, O calix da amargura: Eu, vagabundo e pobre, e aos p?s calcado De quanto ha vil no mundo, Santas inspira??es morrer sentindo Do cora??o no fundo, Sem achar no desterro uma harmonia De alma, que a minha entenda, Porque seguir, curvado ante a desgra?a, Esta espinhosa senda?>> Respondia-lhe uma voz intima, assegurando n?o s? a necessidade de proseguir na jornada, atravez de todas as angustias, mas tambem a certeza da recompensa, se fosse em obediencia ? vontade divina e sujeito ? sua inspira??o. A tenta??o da morte teria sido para Alexandre Herculano apenas um < Do mesmo modo acontecia ao poeta. A angustia em que os primeiros golpes da desillus?o o lan?aram, a agita??o de que nascia o desejo de se afundar n'essa noite sem fim da inconsciencia, dissipava-se como os bulc?es varridos pelo vento que elles geraram e que o vento na sua violencia desfaz. Acalmada a tormenta, contemplando o que lhe restava da sua devasta??o e procurando unil-o e reanimal-o em novas crea??es d'uma fortaleza intangivel, precavida contra o assalto de toda a adversidade, o poeta encontrava < ? que ?s eternidades cosmicas correspondem eternidades do espirito, e n'ellas se form?ra e retemperava incessantemente a alma de Alexandre Herculano, defendida contra toda a trai??o da amargura, para todo o combate armada invencivel, em toda a contingencia. APPARI??ES E ESPECTROS APPARI??ES E ESPECTROS O poeta tinha uma miss?o na terra. O Deus que na consciencia se lhe revelava e elle adorava, n?o era um principio de puro extasi e absorp??o contemplativa, uma corrup??o da energia organica no arrebatamento e na abdica??o de todo o desejo proprio, mas uma vontade determinando a ac??o, desenvolvendo-se de continuo nas cousas da terra, exigindo dos homens de f? que se subordinassem ao seu imperio, e lhe traduzissem a essencia nas realidades contingentes e mortaes. Sentindo no intimo o dominio d'essa vontade suprema, Alexandre Herculano logo cogitou os modos de a cumprir, t?o perfeitamente quanto em suas for?as coubesse, e sem tardar se entregou ? execu??o dos seus mandados com uma fidelidade absoluta. Ordenava-lhe Deus que servisse a patria, a gloria e a virtude. Deus ? poesia deu por alvo a patria Deu a gloria e a virtude. Mas o que era a sua patria? Que queria ella do seu affecto? Como conhecel-a e concebel-a, para se identificar com a sua vida e encorporar o impeto do seu genio no pulsar d'essa vida maior que a sua, commungando-lhe da aspira??o e n'ella se abrazando, immolando-se ao seu triumpho? < Ha uma eternidade no mover das cousas do mundo que Alexandre Herculano n?o ignorou; ha uma continuidade e repeti??o que apaga a distancia, o espa?o e a individualidade, as distinc??es entre o dia de hoje e o dia de hontem, entre o p?lo e os tropicos, entre o rochedo e o homem, entre as ra?as, na??es e epocas. Mas a repeti??o e a continuidade operam-se pela renova??o successiva, pela dissolu??o e reconstitui??o incessantes; as distinc??es e as distancias, de cujo confronto e verifica??o ha de resultar a percep??o da unidade, s? se revelam nas crea??es ephemeras e, para bem servir o eterno, havemos de o sentir e amar na caducidade a que descer, no transitorio e momentaneo. < D'ahi vinha que o poeta, para se guiar no presente olhava para o passado, procurando descortinar-lhe as tendencias e a direc??o, os affectos e as avers?es, os beneficios e os damnos, a robustez e a fraqueza, a luz e as trevas, as ben??os e os castigos; e assim, por amor da < A riqueza que n'essas peregrina??es amontoou e nos legou, ? estupenda; e o uso que d'ella fez, os sanctuarios em que devotamente a enthesourou, as edifica??es que com ella ergueu e onde a recolheu, o espirito em que por toda a parte a purificou e ungiu, ficaram como monumentos de perpetua gloria do povo portuguez, attestando o poder mental da ra?a e a susceptibilidade, d'?ra avante para sempre provada, da grandeza religiosa da sua alma. Desconfiava do talento com que produzia as primicias d'essa renova??o litteraria, mas tinha certeza e f? na fecundidade e belleza dos resultados que promettia, sobretudo no resurgimento moral que nos infiltraria. < Mas < Exemplifiquemos. ? desnecessario escolher, ou antes, ? inutil. O tecido ? d'uma t?o unida igualdade que em todo o ponto ostenta a homogeneidade e o bem ligado da trama, a constancia da c?r e a suavidade e rythmo da ondula??o: <>. Passemos algumas paginas. N?o teria sido esta lucidez e serenidade maravilhosas um momento de feliz disposi??o, e porventura toda a obra estar? repassada de igual encanto? Experimentemos uma outra passagem: < Note-se--a impress?o de surpreza foi nos dois casos identica, como identicos foram o louvor e a condemna??o que se lhe seguiram; louvor dos que prezam a lucidez de entendimento e a clareza de consciencia; e creem na sua efficacia para a fortuna dos povos; e condemna??o dos que, fanatisados e tresloucados pelo interesse de castas, de classes, dos bandos e das clientelas, s? esses veem e sabem defender com acrimonia exaltada, quando o bem publico lhes exige o cerceamento e a quebra de regalias ou o espirito de justi?a lhes denuncia as oppress?es, os crimes e torpezas a que recorreram e recorrem para acrescentar e conservar o seu predominio nefasto. Foi folheando a historia patria que Alexandre Herculano concebeu e nos desvendou na terribilidade tragica do seu inferno as profundezas da injusti?a social. Foi alli que, registando os conflictos de classes e os desmandos, abusos e rapinas dos senhores, conheceu e nos denunciou os crimes da sociedade, acautelando-nos contra a nossa propria qu?da em orgulhosas demencias de virtude, satisfeita e pedante nas commodidades da sua condi??o e alheia de sensibilidade e intelligencia aos males gerados d'ella mesma. < Se, hoje, um alto espirito caustico da actualidade, definindo a no??o corrente de justi?a entre os que se orgulham de a praticar, nos diz que, < Tudo aquillo que o apostolo carecia de saber e confirmar em sua consciencia, tudo a historia lhe dizia. A obra demolidora da revolu??o, a que se associou com t?o claro applauso, n?o seria um acto de ruina e destrui??o, mas s?mente o desafogo e desobstruc??o das tendencias evolutivas nacionaes. Para se continuarem e perfazerem, careciam d'essa violenta remo??o de obstaculos que as prendiam e paralysavam. Aborrecia o modernismo. Detestava a mania das imita??es estrangeiras. < A liberdade, aspira??o suprema da sua gera??o e da sua alma, n?o seria uma innova??o trazida de terra alheia pela phantasia aerea de sonhadores: era uma planta nascida e creada no solo da sua patria e apenas calcada e esmagada, mas n?o morta, aos p?s da crueldade despotica dos reis e dos ministros do estado. < O apostolo ardente d'essa cren?a < A tolerancia religiosa, sonho das grandes almas dos seus companheiros da epopeia liberal, encontrava-a tambem na historia. A ambi??o, porventura intangivel para o inveterado despotismo latino, pela qual se derramava tanto sangue e se exaltava tamanho esfor?o de medita??o e de propaganda, isso que parecia um reino novo, conquistado pela philosophia e por ella arrancado ao fanatismo cruel de sectarios tenebrosos, a tolerancia, seria para Alexandre Herculano uma singela tradi??o de bons tempos da vida nacional. Seguissemos-lhe o rasto: conduzia a paraisos de candida e repousada fraternidade. E contava, rememorando a jornada em que a aben?oada curiosidade do historiador lhe trouxera por l? o pensamento: Internando-se nos labyrinthos da historia, nem sempre teve por?m a alegria de contemplar suaves appari??es bemfazejas, como essa de serena magnimidade que viu na aldeia de Restello, povoada de gentes para as quaes a adora??o de Deus n?o era motivo de oppress?o e odio entre os homens, e onde se mostrasse, em qualquer templo da sua elei??o, ou erguesse um hymno a Christo ou o consagrasse ao propheta islamita, seria invariavelmente protegida pela largueza dos cora??es, pela severidade dos tribunaes e pelas armas dos magistrados da cidade. Por vezes o assaltaram espectros terriveis, em logar de appari??es consoladoras; e, fiel ao seu apostolado, d'elles nos deu fidelissima imagem, sem occultar o pavor que lhe infundiam nem a temerosa suspeita de que desvairados impios tentassem restituir-lhes a vida para flagello da humanidade. Isso era grave, era atroz. Mas havia ainda cousa mais grave. Entre os grupos que por quasi toda a Europa aclamavam as saturnaes da reac??o, havia um mais forte e mais perigoso, porque em muita parte era senhor do poder politico. Era o < <
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