bell notificationshomepageloginedit profileclubsdmBox

Read Ebook: A Divorciada by Vieira Jos Augusto

More about this book

Font size:

Background color:

Text color:

Add to tbrJar First Page Next Page

Ebook has 1622 lines and 43427 words, and 33 pages

Apoiou a face sobre a m?o esquerda, e os seus dedos, n'uma mechanica inconsciente, beliscavam inquietos o rosado lobulo da orelha. Os olhos extacticos e mudos como dois lagos de luz, poisavam, n'uma absorp??o humida e contemplativa, sobre os moveis d'aquelle ninho t?o povoado das suas ideias, dos seus sonhos, das emana??es perfumadas da sua alma.

Tudo por?m n'aquelle momento se lhe affigurava estupido, inerte, sem uma recorda??o, sem uma saudade. O espelho do toucador reflectia-lhe sombras indecisas e vagas; os pequenos frascos de crystal, cheios d'essencias que ella tanto amava, pareciam-lhe agora comparsas imbecis que rodeiam o genio d'um grande artista. A sua commoda pequena, com embutidos de madreperola, onde guardava os seus bellos vestidos, tinha as apparencias informes d'uma tartaruga collossal, empalhada, nos ocios de museu.

Como nos lagos tranquillos, ao avisinhar das tempestades, saltam ao lume d'agua peixes prateados, assim tambem do intimo do seu peito respira??es suspiradas sahiam de quando em quando, agitando-a na quieta??o muda das suas medita??es concentradas.

--Porque n?o teria elle vindo?--

--Assim! sem mais, nem mais!--pensava--? ter-me em muito pouca estima--e cheia d'um phrenesi nervoso apertava com mais for?a o lobulo da orelha, respirava frequente, agitando o seu sapatinho n'umas flex?es rapidas, que indicavam necessidade de movimentos expansivos.

Os olhos marejavam-se-lhe d'uma humidade turva, lagrimas segregadas no reflexo de coleras occultas.

--Mas se estivesse doente! Ah, como era infeliz! Que maldita duvida--e deixava-se cahir n'uma suavidade de sentimentos, esquecia todas as recrimina??es, todas as queixas, tudo o que podesse recordar-lhe uma falta d'elle. Lembrava-se apenas que estaria talvez s?, desamparado, entregue ? indifferen?a egoista de criados de hotel, sem um amigo, sem uma irm? carinhosa, desvelada, que o affagasse como a uma crean?a, que lhe tomasse a cabe?a entre as m?os, que depozesse um beijo animador na sua testa aquecida pela febre.

Via-o sorrindo, se ella lhe podesse apparecer, com aquelle sorriso meigo dos febricitantes e o olhar prostrado, d'uma languidez doentia--que lhe devia ficar t?o bem!--

--Ah, como desejaria ser sua esposa, sua irm?, sua amiga! como ella o amaria assim doente, como seria desvelada, solicita, carinhosa.--

Calava-se; as lagrimas deslisavam sobre as suas faces, abundantemente, como um rio que se solta. Pouco a pouco diminuiam, estancavam-se n'uma sensa??o ardente, de febre nervosa que a invadia. Sentiu frio, lembrou-se que j? era talvez muito tarde. N'este instante o Jorge voltava do Club. A Joaquina fazia tilintar dentro as chavenas do ch?.

Poz-se em p? e principiou a despir-se; a sua cama ? franceza, estreita, de colcha branca, esperava-a n'uma attitude virginal e passiva, como um ninho abandonado, ?s quentes irradia??es de corpos vivos.

Era aquella tambem a hora a que costumava despedir-se d'Alberto; por isso a crise ia diminuindo, cahia n'um desalento molle, de prostra??o fatigante. Metteu-se no leito, despenteada, com um vagar pregui?oso, de habitos indolentes, alisando o travesseiro. Uma sensa??o de frescura do linho a penetrou at? ? medulla; teve um calefrio rapido, um ah! de satisfa??o; ennovellou-se, como as crean?as debeis e ficou assim, muito tempo, sem se mover, com os vagos olhos absortos, pregados na lampada, que ardia.

Lembrou-se que n?o tinha resado; descobriu o bra?o e fez o signal da cruz; os labios balbuciavam umas ora??es banaes, narcotisadoras, que lhe fizeram pesar as palpebras.

Tinha adormecido. Nas linhas do seu rosto divisava-se ora um sorriso alegre, de satisfa??o saciada, ora uma contrac??o spasmodica, revelando amarguras, desesperos intimos, que a commoviam. Sonhava com Alberto.

--Ah! como o Alberto gostaria d'ella assim!--sorria vaidosa--

--E a elle, via-o tambem, muito frisado, de gravata branca, a camisa com abotoadura de brilhantes, de casaca, muito attencioso, muito reverente, cheio de elegancia, invejado por todas, por ellas, pelas suas amigas, que a felicitavam com sorrisinhos trai?oeiros, compromettedores, que faziam c?rar.

Via o aspecto dos trens, enfileirados, ao sahir da egreja, e a sua carruagem de noiva, com os cavallos brancos, e cocheiros de fardas vistosas. O commendador Faria, muito cheio de brilhantes, pesado, enchendo elle s? um trem, seria o padrinho.

Ao sahir, quando j? vinha pelo bra?o d'Alberto, as mulheres do povo, cobrindo-a de santas aspira??es, de ben??os:

--que Deus a fizesse feliz, que fosse em boa hora--

--Apesar de que n?o promettia muito a cara do noivo--observara uma aldeleira ambulante, de grosso ventre levantado, e roupas velhas penduradas no bra?o de c?res arreliosas.

Que vontade teve de a esganar, o diacho da velha... dizer que o seu Alberto, t?o lindo, t?o sympathico, n?o tinha boa cara: forte bruta!--

Mas esqueceu-a breve; o cortejo dos convidados, um sequito apparatoso que a rodeava como a um astro, fazia-lhe vaidade, tornava-a feliz, parecia-lhe que a dilatava de superioridade.

Depois os convidados, n'uma civilidade ironica, iam-se despedindo. As senhoras abra?avam-a, segredando-lhe ao ouvido e pondo beijos miudinhos nas suas faces aquecidas. A final ficaram s?s, ella e o seu amado, o seu marido! Havia uma lampada de crystal no quarto e os cortinados, como as v?las d'uma gondola, agitavam-se trementes, como se o leito f?ra na realidade um barcosinho, onde ambos tivessem de navegar para um paiz distante, desconhecido, estranhamente novo. Elle tomara-a um pouco arrebatadamente, sentando-a nos joelhos, affagando-a com beijos e sorrindo, ao tirar-lhe o v?o de noiva, que a fazia reflectir no espelho do toucador, toda branca, d'uma brancura eburnea, de camelia nevada.

E no seu rosto adormecido divisava-se um limpido sorrir, de doce voluptuosidade, como se a alma lhe irradiara nas sensa??es t?pidas d'aquelle sonhar delicioso. Mas logo ap?s esta serenidade tranquilla e suave, em que talvez a sua imagina??o voasse para esse periodo ditoso e perfumado da lua de mel, em que teria sempre junto de si o seu maridinho, muito carinhoso e muito meigo, o periodo dos jantarzinhos frugaes e delicados, com flores na meza e alegrias no espirito, as linhas da physionomia contrahiram-se-lhe n'uma crispa??o dolorosa, e o sonho revestia uma fei??o diversa, em que a amargura vinha como uma flor envenenada, empe?onhar os dias de ventura;

--era ainda aquelle o Alberto que ella amava, mas desleixado, vadio, ?brio; tinha grosserias insupportaveis, ferocidades de despota--

--e via-se triste, chorando muito, sem um consolo, sem um carinho que a alentasse...--era horroroso--estava diante de si uma galeria subterranea, escura, um abysmo de sombras...

--n?o, n?o queria caminhar, tinha medo...--mas elle, rindo, dera-lhe um impulso brutal, fizera-a entrar; um caminho escabroso, cheio de asperesas, silvados rodeando-a por todos os lados... cada passo custava-lhe muitas lagrimas... e o Alberto ria, ria, estupidamente, como um idiota embriagado... Um anjo se approximou d'ella; tinha o perfil do commendador Faria, com os seus oculos d'ouro, e as m?os a despedirem luz como as dos illuminados celestes; mas a luz sahia-lhe da base dos dedos, do logar dos anneis; e tomou-a nos bra?os, sentia-se voar, muito cheia de doce gratid?o, quasi esquecida, quando uma crean?a se lhe prendeu aos vestidos, parecendo reprehendel-a d'aquelle v?o egoista, olhando-a com a limpidez casta d'uns grandes olhos pretos;... mas o anjo--commendador dominava-a, arrastando-a sempre, perguntando-lhe n'um adociado brazileiro:

--se a sinhasinha n?o voava,--que morreria se parasse, l? estava o snr. Alberto a rir-se d'ella--

e--sim, l? estava!--olhou para traz, uma enorme cadeia a prendia a elle, e uns policias passavam ent?o, empurrando-a, batendo-lhe brutalmente.

--Queria fugir, fugir: era horroroso!>>

Despertou ent?o. Um suor frio lhe humedecia a testa; a cabe?a doia-lhe um pouco, sentia-se fatigada. A luz da lampada esbatia-se moribunda nos primeiros alvores da manh? que vinham entrando pelas fendas da janella; ouviu o gallo cantar no quintal e logo depois uma voz arrastada, n'uma melopeia monotona, bradando do fundo da escala:

--Leiteira!--

A Joaquina desceu; ouvia-se um murmurio indistincto de vozes feminis, e em seguida o estrondear da porta que se fechava.

N'aquelle dia andou toda alvoro?ada, nervosa, muito inquieta. Olhava muitas vezes o relogio, uma pesada machina de nogueira, a que o Jorge todos os sabbados dava corda, com a phrase rythmica:

--Tens de comer para oito dias.--

Parecia-lhe que os seus largos ponteiros de metal se moviam com uma lentid?o desesperadora. Teve vontade de o adiantar--mas era uma tolice--pensou.

Sentou-se a trabalhar para ver se distrahia. Descobriu no bastidor um bordado delicado, a matiz, um ramo de rosas, sobre que vinha poisar uma borboleta. A m?o por?m n?o lhe assentava, as sedas sahiam frequentemente da agulha, o desenho errava.

--Ora! n?o estava para aquillo.--

Levantou-se, principiou a ler; era <> de Camillo Castello Branco; interessava-se muito por aquelle sympathico filho do sapateiro, o heroe do romance, e sentiu deslisar umas lagrimas furtivas ao ver a formosa Paulina, uma doce crea??o do romancista, t?o soffredora e t?o amante.

Tocaram a campainha.

--Quem seria?--disse pousando rapidamente o livro e pondo-se diante do espelho, para anediar o penteado.

--Se fosse visita de ceremonia! que massada.--

Mas a Joaquina veio dizer:--que estava ali a snr.? D. Amelinha Bastos, aquella que tinha casado.--

--E vem s??--

--Vem, minha senhora.--

--Ah! que mandasse entrar para a sala de visitas, que se aviasse.--

--N?o te encommodes, n?o te encommodes, menina, eu n?o sou de ceremonias, venho mesmo para a tua sala de trabalho,--disse a Bastinhos entrando estouvadinhamente, chilreando como um passaro alegre.

Beijaram-se muito,--que n?o havia quem a visse, devia estar muito zangada, se era cousa que se fizesse.--

--Ai, filha, tenho tido tanto que fazer.--

--Tira o chap?u; espera, eu o tiro,--

e com um geito feminil, delicado, levantou-lh'o de sobre o penteado, emquanto a Amelinha, quieta como uma crean?a que se enfeita, esperava n'uma attitude passiva.

Add to tbrJar First Page Next Page

 

Back to top