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Read Ebook: Côrte na aldeia e noites de inverno (Volume I) by Lobo Francisco Rodrigues

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Ebook has 156 lines and 47503 words, and 4 pages

Rita Farinha

BIBLIOTHECA UNIVERSAL

ANTIGA E MODERNA

CORTE NA ALDEIA

NOITES DE INVERNO

POR

FRANCISCO RODRIGUES LOBO

VOLUME I

LISBOA COMPANHIA NACIONAL EDITORA

Successora de DAVID CORAZZI e JUSTINO GUEDES 40--Rua da Atalaya--52

FILIAES: Pra?a de D. Pedro, 127, 1.^o andar, PORTO 38, rua da Quitanda. Rio de Janeiro

LISBOA

TYPOGRAPHIA DA COMPANHIA NACIONAL EDITORA

Em quanto est? o avaro em seu thesouro Cevando os olhos, dando ao pensamento Materia a v? cobi?a de mais ouro.

ADVERTENCIA

C?RTE NA ALDEIA

NOITES DE INVERNO

DIALOGO I

ARGUMENTO DE TODA A OBRA

Perto da cidade principal da Luzitania est? uma graciosa aldeia, que com egual distancia fica situada ? vista do mar oceano, fresca no ver?o, com muitos favores da natureza, e rica no estio e inverno com os fructos e commodidades, que ajudam a passar a vida saborosamente; porque com a vizinhan?a dos portos do mar por uma parte, e da outra com a communica??o de uma ribeira, que enche os seus valles e outeiros de arvoredos e verdura, tem em todos os tempos do anno o que em differentes logares costuma buscar a necessidade dos homens: e por este respeito foi sempre o sitio escolhido para desvio da c?rte, e voluntario desterro do trafego d'ella: dos cortez?os, que alli tinham quintas, amigos ou heran?as, que costumam ser valhacouto dos excessivos gastos da cidade.

Um inverno em que a aldeia estava feita c?rte com homens de tanto pre?o, que a podiam fazer em qualquer parte, se juntava a maior d'elles em casa d'um antigo morador d'aquelle logar, que tambem o f?ra em outra edade da casa dos reis, d'onde com a mudan?a e experiencia dos annos, fez elei??o dos montes para passar n'elles os que lhe ficavam da vida, grande acerto de quem colhe este fructo maduro entre desenganos. Alli ora em conversa??o aprazivel, ora em moderado e quieto jogo se passava o tempo, se gosavam as noites, se sentiam menos as importunas chuvas e ventos de novembro, e se amparavam contra os frios rigorosos de janeiro.

Entre outros homens, que n'aquella companhia se achavam, eram n'ella mais costumados, em anoitecendo, um letrado que alli tinha um casal, e que j? tivera honrados cargos do governo da justi?a na cidade, homem prudente, concertado na vida, douto na sua profiss?o, e lido nas historias da humanidade: um fidalgo mancebo, inclinado ao exercicio da ca?a, e muito affei?oado ?s cousas da patria, em cujas historias estava bem visto: um estudante de bom engenho, que entre os seus estudos se empregava algumas vezes nos da poesia: um velho n?o muito rico, que tinha servido a um dos grandes da c?rte, com cujo galard?o se reparara n'aquelle logar, homem de boa crea??o, e, al?m de bem entendido, notavelmente engra?ado no que dizia, e muito natural de uma murmura??o que ficasse entre o couro e a carne, sem dar ferida penetrante. Ao senhor da casa chamavam Leonardo, e ao doutor Livio, ao fidalgo D. Julio, ao estudante Pindaro, ao velho Solino. F?ra estes havia outros de quem em seus logares se far? men??o, que assim como os mais, n?o eram para engeitar em uma conversa??o de poucas porfias.

Uma noite do novembro, em a qual j? o frio n?o dava logar a que a frescura do tempo convidasse ao sereno, estando ainda Leonardo ? mesa, por?m no fim das iguarias, bateram ? porta Pindaro e Solino, aos quaes o velho mandou abrir com grande alvoro?o e festa; porque a de o buscarem era a que mais estimava por sua. Subiram, agasalhou-os com contentamento e cortezia. Sentaram-se perto da mesa, e disse o senhor da casa:--Peza-me que n?o viesseis mais cedo, que me poderieis acompanhar n'este trabalho t?o necessario da velhice. Mas se ainda virdes na mesa alguma cousa de vosso gosto, lan?ae m?o d'ella, que de mistura achareis a minha boa vontade.--Eu sei a que tendes de me fazer merc?; mas venho ceiado e tambem Solino, a quem tive por hospede, e j? a conversa??o me dobrou o gosto das iguarias.--Eram ellas t?o boas que a mim me davam gra?a. Por?m o serdes v?s t?o miudo nas cortezias, me deu muita pena: e j? que sois t?o discreto, e tanto meu amigo, d'aqui adeante emendae-vos nas ceremonias da mesa; e adverti ao vosso mo?o que n?o acompanhe com os olhos os b?ccados dos hospedes, at? o estomago: porque apostarei que me contou todos os da ceia, e anda t?o destro no apartar das brigas, que ainda bem n?o desvio um prato do outro, quando me d? xaque em ambos, e me deixa em casa branca. E n?o vos pare?a que ? isto dizer que venho faminto; que, se assim f?ra, p?de ser que o cumprimento do sr. Leonardo n?o fic?ra solto e livre; antes ? fazer-vos lembran?a que, pois daes tambem de comer, n?o tenhaes um mo?o Harpya, que descomponha o sabor dos manjares.--Bem sei que ainda farto n?o haveis de deixar de roer. O meu mo?o ? de uma d'estas aldeias vizinhas, ha pouco que me serve; por isso, e por ser creado de estudante, lhe devieis perdoar o erro, e a mim o remoque; por?m a vossa condi??o n?o se sujeita a respeito nem a desculpas.--? t?o saborosa a murmura??o de Solino que tambem na mesa se p?de estimar como boa iguaria: e se a eu tivera muitas vezes, d?ra vida ao appetite que para as outras me falta.--Se o ella f?ra em mais occasi?es me val?ra das em que a v?s podeis desejar. Mas, n?o tratando de vol-a offerecer, nem de a desculpar com meu amigo; como ceiastes hoje t?o tarde, e n?o vieram mais cedo o doutor e D. Julio?--Antes me mandaram j? recado, e n?o devem tardar. Eu o fiz com a ceia, porque os homens de servi?o me n?o deram logar sen?o a esta hora: mas ou?o que batem ? porta e devem ser elles.

A este tempo mandou juntamente al?ar a mesa, e levar a luz ? escada. Subiram o doutor e D. Julio; saudaram-se com muita alegria; e sentados perto do fogo, disse o velho: Muito deveis ambos a Solino; porque vindo a esta casa com Pindaro, de quem foi convidado na ceia, e tendo a minha em estado de que se podia aproveitar de alguma cousa d'ella, vos achou menos, e perguntou a causa da tardan?a; signal ? este de amor e da pouca raz?o com que o temos por desobrigado de toda a affei??o dos amigos.--N?o ? Solino t?o descuidado do que lhe eu mere?o que se esque?a de mim, e de quanto sentirei perder horas suas: e pelo interesse das da conversa??o do doutor o tivera em menos conta se as n?o desej?ra: e al?m d'isto posso affirmar que est? pago da lembran?a que teve, com a diligencia que fizemos pol-o trazer comnosco, que voltamos pela sua porta, e eu tirei uma pedra ? janella, d'onde me disseram que ceiava com Pindaro; e cada um dos dois me fez inveja.--Ah! sr. D. Julio t?o grande trovoada de cumprimentos seccos n?o podia deixar de lan?ar pedra. Eu tenho feita a conta, e sei que n?o posso pagar o que vos devo al?m d'essa honra e merc?, sen?o com a humildade com que a todas reconhe?o por vossas. Dae-vos por satisfeito de meus desejos, e de p?r aqui ponto nos cumprimentos; porque n?o tenho polvora mais que para a primeira salva.--J? eu me quizera metter em meio porque se v?s a terdes em cortezias, n?o haver? quem as pague, se n?o f?r Pindaro, que tem uma corrente t?o arrebatada, que n?o d? vau a nenhuma rethorica do mundo.--Agora levastes tres de um tiro; n?o me dou por seguro n'este logar, inda que ? de minha casa: por?m n?o tendes raz?o contra Pindaro, que, cada vez que o ou?o, me parece um livro de cavallarias. Se elle tivera encantamentos escuros, castellos roqueiros, cavalleiros namoradores, gigantes suberbos, escudeiros discretos, e donzellas vagabundas, como tem palavras sonoras, raz?es concertadas, trocados galantes, e periodos que levam todo o f?lego, pud?ra p?r a um canto o Amadis, Palmeirim, Clarimundo, e ainda o mais pintado de todos os que n'esta materia escrev?ram: e j? estive em o persuadir que se mettesse em uma empreza semelhante: por?m receio que se me ensoberbe?a com a altiveza de seu estylo, e despreze aos amigos.--N?o merecia eu, sr. Leonardo, a v?s, nem ao doutor que tomasseis meus defeitos por materia de vossa galantaria: falo como sei, e cada um se extende conforme a roupa com que se cobre. N?o sou t?o philosopho como o doutor, t?o cortez?o como v?s, nem t?o engra?ado como Solino, nem tenho maiores penas que a gaiola; por?m se abrisse as azas para comp?r livros, n?o houveram de ser de patranhas. Por isso fiae mais de meus pensamentos.--Nunca o tive de vos offender nem me parece com raz?o a vossa desconfian?a; nem podeis fazer t?o pouca conta dos livros de cavallarias, e dos famosos auctores que os escreveram, e que mostraram n'elles a sua boa linguagem com toda a perfei??o: a gra?a de tecer e historiar as aventuras, o decoro de tratar as pessoas, a agudeza, a galantaria das ten??es, o pintar as armas, o betar as c?res, o encaminhar e desencontrar os successos, o encarecer a pureza de uns amores, a pena de uns ciumes, a firmeza em uma ausencia, e outras muitas cousas que recreiam o animo, affei?oam e apuram o entendimento. Se v?s tendes por despreso comp?r livros de cavallarias, eu vos desengano que pertencem mais cousas ao bom auctor d'elles, que a um dos lettrados philosophos ou juristas, com que desejaes do vos parecer; porque lhe importa saber a geographia dos reinos e provincias do mundo, para encaminhar por ellas a sua historia; ter noticia dos nomes e cousas que usam n'aquellas partes, d'onde faz naturaes os cavalleiros, saber estylo de c?rte para as mesuras, gasalhados e cortezias, conforme as pessoas introduzidas, conhecer da justi?a, do torneio e do sarau. a ordem, as leis e as gentilezas, entender da bastarda e da gineta, o que conv?m para pintar o encontro, a qu?da, o acerto, o dezar, o brio ou descuido de um cavalleiro, debuxar o cavallo nas c?res, concertal-o nas redeas, no pizar, no arremesso, na furia, na destreza, nas carreiras, cha?as e rodeios, e sobre o conhecimento de todas as sciencias e disciplinas, tambem ha de ter alguma noticia dos nigromantes antigos para os encantamentos que servem de bord?o e valhacouto aos historiadores.--Tenho por mal empregado tanto cabedal em cousa de t?o pouco interesse, e n?o sou de voto qee o auctor, que tiver as partes que v?s dizeis que s?o necessarias para essa composi??o se occupe n'ella. De que servem livros de cavallarias fingidas? E se ha ociosos que os leiam, porque ha de haver algum que os escreva? Ou que espere algum fructo de trabalho t?o v?o?--Mas que certeza t?o grande que cada um approva o que segue, sendo assim que ninguem se contenta do que tem. Desejaveis agora que todos os livros, e todos os homens tratassem s?mente da vossa profiss?o e fossem juristas e philosophos. Pois ainda que eu sou bacharel em linguagem, me atrevo a contradizer essa opini?o adquirida em latim: porque para recrea??o, politica e bom estylo se n?o deve menor logar a estes, que aos vossos de trapa?as e opini?es, e outros a que chamaes conselhos, que o d?o ?s vezes bem ruim a quem se fia de sua leitura.

--Eu era de parecer que poupassemos esta materia para gastar a noite, pondo-a em maneira de disputa. E se a todos parece assim, cada um diga sua opini?o nos livros que mais lhe contentam, e das raz?es que tem para os approvar; e d'este modo, ou affei?oados, ou convencidos, saberemos os que s?o de maior gosto, e utilidade.--A isto at? agora estive calado contra minha natureza; porque me houve por incapaz de fazer ter?o ao doutor e Leonardo: mas pois o voto ? que se jogue com toda a baralha, digo que ? esta a melhor materia que se podia escolher para passar o tempo. E j? pode ser que algum dos que aqui est?o, que deseja deixar no mundo memoria de seu engenho, saiba n'esta occasi?o o em que o pode empregar melhor.--Pelo que a mim toca comecemos logo; e a v?s, sr. D. Julio, ? bem que demos a m?o a troco do alvitre: e n?o tratando dos livros divinos, nem dos necessarios, dos de recrea??o nos podeis dizer quaes, e por que raz?es vos contentam.--A minha inclina??o em materia de livros , de todos os que est?o presentes ? bem conhecida: s?mente poderei dar agora de novo a raz?o d'ella. Sou particularmente affei?oado a livros de historia verdadeira, e mais, que ?s outras, ?s do Reino em que vivo, e da terra onde nasci: dos reis, e principes que teve, das mudan?as que n'elle fez o tempo e a fortuna, das guerras, batalhas, e occasi?es, que n'elle houve, dos homens insignes, que pelo discurso dos annos florecer?o: das nobrezas e braz?es que por armas, lettras, ou privan?a se adquiriram. O que me inclinou ? escolha d'esta li??o, foi que tive alguma de um homem muito douto, em o que o deve desejar de ser, e parecer o que ? bem nascido; ao qual elle dizia, que o que mais convinha que soubesse era, o appellido, que tinha, d'onde lhe veio; quem f?ram seus passados, que armas lhe deixaram, a significa??o, e fundamento da figura d'ellas, como se adquiriram, ou accrescentaram. Logo os reis que reinaram na sua patria, as chronicas d'elles, os principios, as conquistas, as emprezas, e o esfor?o de seus naturaes; porque falando d'elles nas terras extranhas, ou na sua com extrangeiros, saiba dar verdadeira informa??o de suas cousas. E alcan?adas estas, lhe estar? bem tudo o que mais puder saber das alheias. E na verdade, nenhuma li??o pode haver que mais recreie, e aproveite, que a que sei que ? verdadeira, e por natural ao desejo dos homens deleitosa.--N?o ? essa a minha opini?o porque contra o gosto me assombram muito cousas passadas, e andar abrindo sepulturas de gente morta. E no que toca ? verdade, certo que ? conta dos enterrados se escrevem algumas vezes t?o grandes mentiras, que lhes n?o levam vantagem os fingimentos de historias imaginadas. E havendo um homem de ler o que n?o ?, ou o que sabe, ? t?o caldeado, e t?o batido da forja dos auctores, que mudado traz o metal, a c?r, e a natureza: estou melhor com os livros de cavallarias, e historias fingidas, que, se n?o s?o verdadeiros, n?o os vendem por esses: e s?o t?o bem inventados, que levam ap?s si os olhos, e os desejos dos que os l?em. E n?o estima um auctor matar mais dois mil homens com a penna, para fazer valente o seu cavalleiro, com a espada, sem estar receando os ditos das testemunhas que ficaram da batalha; que por eguaes respeitos pende cada uma para seu cabo. Pois se ? caso, em que um historiador queira passar adeante como Ariosto, n?o matou mais gente a peste grande em Lisboa, que Rodamonte nos muros de Paris.--Essa ? uma das raz?es, porque eu os reprovo porque a fabula ? uma cousa falsa, que podia comtudo ser verdadeira, e acontecer assim como se fingio. Por?m a isto n?o d?o logar os livros de cavallarias, com esses excessos, e outros encantamentos, fazendo casas, e torres de crystal, edificios, lagos, e columnas impossiveis, pyramides de alabastro, e casas de pedraria, cuja riqueza podia empobrecer a fortuna. E em nossos tempos, na India Oriental, sabemos que o rei Mogor andou muitos annos fabricando uma casa de esmeraldas, por cujo respeito se passavam d'este Reino ? nossa India as da Occidental. E emfim morreu sem a acabar; e n?o ha livro de cavallarias em que qualquer cavalleiro de um castello n?o acabe cousas maiores. E deixando isto, ? gra?a, e galantaria, comparar historias verdadeiras com patranhas desproporcionadas, que gastam o tempo mal a quem n'ellas se occupa, quando as outras servem de exemplo para imitar, de lembran?a para engrandecer, e de recrea??o para divertir. A quem n?o anima ler as historias de seus passados? A quem n?o move o desejo de egualar a fama que l? de suas obras? O governo da paz? A ordem da guerra? O trato dos homens? O commercio das provincias? D'onde se conserva, alcan?a, e sabe sen?o pelas historias verdadeiras? Porque n'ellas sabe cada um felizmente pelos successos alheios o que deve seguir. D'onde Marco Tullio chamou ? historia mestra da vida.--V?s, sr. doutor achareis isso nos vossos cartapacios: mas eu ainda estou contumaz. Primeiramente, nas historias, a que chamam verdadeiras, cada um mente segundo lhe conv?m, ou a quem o informou, ou favoreceu para mentir; porque se n?o f?rem estas tintas, ? tudo t?o misturado, que n?o ha panno sem nodoa, nem l?gua sem m?u caminho. No livro fingido contam-se as cousas como era bem que f?ssem, e n?o como succederam, e assim s?o mais aperfei?oadas. Descreve o cavalleiro como era bem que os houvesse, as damas qu?o castas, os reis qu?o justos, os amores qu?o verdadeiros, os extremos qu?o grandes, as leis, as cortezias, o trato t?o conforme com a raz?o. E assim n?o lereis livro, em o qual se n?o destruam soberbos, favore?am humildes, amparem fracos, sirvam donzellas, se cumpram palavras, guardem juramentos, e satisfa?am boas obras. Vereis que as damas andam pelas estradas, sem haver quem as offenda, seguras na sua virtude propria, e h? cortezia dos cavalleiros andantes. E quanto ao retrato e exemplo da vida, melhor se colhe no que um bom entendimento tra?ou, e seguiu com muito tempo de estudo, que no successo, que ?s vezes se alcan?ou por m?o da ventura, sem a diligencia e engenho metterem nenhum cabedal. N?o digo que os livros tenham excessos desatinados, que n?o sejam semelhantes ? verdade, nem os encantamentos t?o escuros e desconformes, que n?o tenham alguma maneira de enganar o juizo; por?m os livros bem fingidos, como verdadeiros obrigam. Um curioso em Italia estando com sua mulher ao fogo lendo o Ariosto, prantearam a morte de Zerbino com tanto sentimento, que lhe accudiu a visinhan?a a saber o que era. E no que toca ao exemplo; um capit?o valoroso houve em Portugal, que o n?o teve melhor o Imperio Romano, que com a imita??o do um cavalleiro fingido, foi o maior de seus tempos, imitando as virtudes que d'elle se escreveram. Muitas donzellas guardaram extremos de firmeza, e fidelidade, costumadas a l?r outros semelhantes nos livros de cavallarias. Na malicia da India tendo um capit?o nosso cercado uma cidade de inimigos, certos soldados camaradas, que albergavam juntos, traziam entre as armas um livro de cavallarias, com que passavam o tempo. Um d'elles, que sabia menos que os mais d'aquella leitura, tinha tudo o que ouvia l?r por verdadeiro os outros ajudando a sua simpleza lhe diziam que assim era. Veio occasi?o de um assalto, em que o bom soldado invejoso, e animado do que ouvia l?r, lhe pareceu ensaio de mostrar seu valor, e fazer uma cavallaria, de que ficasse memoria; e assim se metteu entre os contrarios com tanta furia, e os come?ou a ferir t?o rijamente com a espada, que em pouco espa?o se empenhou de sorte, que com muito trabalho, e perigo dos companheiros, e de outros muitos soldados, lhe ampararam a vida recolhendo-o com muita honra, e n?o poucas feridas. E reprehendendo-o os amigos d'aquella temeridade, respondeu: Ah! deixae-me, que n?o fiz a metade do que cada noite l?des de qualquer cavalleiro do nosso livro. E elle d'alli adeante o foi muito valoroso.--Muito festejaram todos o conto, e logo proseguiu o doutor: T?o bem fingidas podem ser as historias, que mere?am mais louvor, que as verdadeiras; mas ha poucas que o sejam; que a fabula bem escripta ainda que n?o tenha for?a de verdade, tem uma ordem de raz?o, em que se podem manifestar as cousas verdadeiras. Xenofonte querendo pintar uma republica perfeita, e regimento politico, por modo de historia, fingiu o governo de Cyro, rei dos Persas. D. Antonio de Guevara, em nome de um imperador romano escreveu o que elle queria dizer em Hespanha; e outros que ainda em modo mais extranho ensinaram aos homens, como Esopo nas suas fabulas, e Lucio Apuleio no seu Asno d'ouro; e todos os livros que em seu genero s?o bons, se podem chamar perfeitos. Resta agora que o que escreve historia seja verdadeiro; e n?o ter? Solino de que o reprehender n'ella. O que comp?e fabulas seja verosimil, e n?o terei eu raz?o de o reprovar. O que trata de sciencia, alegue raz?es. O que fala de artes, experiencia. E o que quer ensinar principios, mostre auctoridade. E posto que eu tenha muitas que allegar em favor da vossa opini?o, sr. D. Julio, v?s estaes no caso, e todos os mais, que a historia verdadeira apascenta os doutos, adelga?a os grosseiros, encaminha os mo?os, ensina os mancebos, recreia os velhos, anima aos baixos, sustenta aos bons, castiga aos maus, resuscita aos mortos, e a todos d? fructo a sua li??o. E porque esta n?o seja mais comprida, diga Pindaro agora a sua opini?o.

--Apostarei eu que, se a Pindaro lhe armarem com poesia levantada sobre os bons conceitos, e versos, que com serem amorosos, sejam arrogantes, que o tomaram como passaro em visco.--Para isso arredar-lhe as occasi?es, e v? com declara??o, que n?o tratamos de poesia.--Essa condi??o logo ao principio ficou declarada; que como exceptuastes livros divinos, n'esse numero devem estar os dos poetas, que mereceram este nome; e o que elles antigamente tiveram, e ainda agora lhe d?o os Latinos, assim o deixa entender. E Plat?o quando d'elles escreve, lhes chama divinos interpretes dos deuzes, possuidos de espiritos celestes: d'onde Marco Tullio tirou os louvores, com que os trata. Origenes affirma que a poesia ? uma virtude espiritual, que inspira em os poetas, e lhes enche o animo e o entendimento de uma divina for?a. Santo Agostinho lhes chama theologos para cantarem os louvores divinos. Diziam os philosophos antigos que, se os deuses falassem, seria em verso: trazendo exemplo do oraculo de Apollo, e das Sibyllas. Cassiodoro diz que a poesia tomou principio da divina escriptura. De maneira que por auctoridade de t?o grandes var?es, nunca os livros de poesia podem vir em competencia com os de que at? agora tratastes; que d'outro modo j? estivera concluida a differen?a.--O que eu vejo que, ainda que o doutor vos cerrara a porta, que mettido de ilharga dissestes tudo o que cumpria a vosso intento por junto, o quanto para mim estaes declarado; o com o desejo de ouvir a opini?o do doutor, n?o digo o mais que me, parece.--Ora n?o quero que a essa conta fique o meu voto ?s escuras; e digo, n?o falando em poesia, que n?o escolho li??o de historiadores verdadeiros, nem tenho por melhor a dos fingidos; porque uns servem de conservar a memoria, os outros de enganar o entendimento: e ser?o melhores os livros que deleitem a memoria, e a vontade, e apurem, e levantem o entendimento, como os de recrea??o, que com alguma enganosa novidade tratam de materias politicas, e engra?adas: de c?rte, de aldeia, e de qualquer sujeito aprazivel: e ha d'estes muito bem recebidos, approvados, e proveitosos na republica, cuja variedade, e doutrina ? para mim li??o muito saborosa.--N?o estou mal com essa opini?o o quasi que v?s, e eu estamos em um mesmo pensamento; sen?o que deixastes de declarar o que agora me fica para dizer; porque at? aqui fal?mos do modo de compor, e escrever livros; e n?o das materias, que escriptas ser?o agradaveis. E deixando em duvida o vosso parecer para se conferir com a ten??o; o meu ?, que o melhor modo de escrever s?o os dialogos escriptos em prosa, com figuras introduzidas, que disputem, e tratem materias proveitosas, politicas, engra?adas, e cheias de galanteria: sendo a primeira figura da obra o autor d'ella; e isso que v? guiando, e introduzindo as mais, que sejam apropriadas ?quellas materias, de que h?o de tratar entre si. E al?m de ser este estilo mais claro, mais vulgar, mais excellente, inclue em si a li??o de todos os outros modos de escrever, como o s?o os da historia verdadeira, e fingida, das artes liberaes, e mecanicas; das sciencias, e disciplinas necessarias; das profiss?es particulares; da raz?o do governo; da vida politica ou privada. E quando este modo de escrever n?o tivera por si mais que a auctoridade dos que n'elle escreveram, como foi Plat?o, Xenofonte, Tullio, e outros infinitos: essa bastara para acreditar os dialogos. Al?m d'isto, eu tenho para mim que aquella ? melhor escriptura, que com mais perfei??o, e viveza imita a pratica, e conversa??o dos homens; porque assim como a melhor pintura ? a que mais se parece com a obra da natureza, a que quer contrafazer; assim a melhor escriptura ? a que retrata com mais semelhan?a o falar, e conversa??o d'entre os amigos. Nos poemas tinham os poetas antigos que o mais levantado era a tragedia pela imita??o natural da pratica, com introduc??o de figuras, junto com a gravidade, peso, e tristeza dos successos tragicos. E porque tambem a variedade ? a que mais costuma enterter, e deleitar o animo dos homens, e esta ? mais certa, e mais propria nos dialogos, me parece que no gosto d'elles ser?o melhor recebidos.

--Pois assim ? que a principal raz?o porque approvaes os dialogos, ? porque mais familiarmente se parecem com a pratica. Desejo saber qual ? mais nobre cousa, se a pratica, se a escriptura: porque a mim me parece que ? escriptura se deve o melhor logar, e que antes merecia a pratica por se parecer com ella; o que agora encontra a vossa opini?o.--Nenhuma duvida ha que a pratica seja mais nobre, mais antiga o mais excellente; porque, al?m de o falar ser opera??o natural dos homens, e acto em que elles fazem vantagem, e differen?a a todos os animaes, a escriptura n?o ? mais que uma escrava e servente das palavras, e o escrever n?o ? outra cousa mais que supprir com um instrumento por meio da arte, e das m?os o que com a voz se n?o p?de exprimir e alcan?ar com os ouvidos, ou por distancia de logar, como quem escreve aos ausentes, ou por discurso de tempo, como quem escreve para os vindouros. E porque nunca a escrava ? t?o nobre como a senhora a quem serve, em quanto escrava, nem o que substitue em logar d'outrem se lhe p?de preferir no mesmo logar; assim nunca a escriptura p?de egualar a nobreza e perfei??o da pratica.--O contrario me parece a mim porque nem por a pratica ser mais antiga, e primeira que a escriptura ? mais perfeita; antes ella foi a perfei??o da pratica: e posto que seja pr?pria opera??o do homem o falar, n?o ? n'elle menos nobre accidente o de escrever; antes me parece mais digno o que elle alcan?ou por arte, que o que adquiriu por uso: e quasi que ousaria a dizer que ? opera??o sua o falar, dada a respeito de haver de escrever, pois esse ? o meio de se perpetuar, sustentando no entendimento dos presentes, e na lembran?a dos futuros a memoria das cousas passadas. Assim que nem por a primeira raz?o merece a pratica melhor logar, nem a escriptura, por servente e ministra sua, ? menos nobre. Porque o sol serve de mostrar as cousas creadas, que lhe s?o muito inferiores, e de dar luz e nutrimento a outras de menor qualidade, e nem por isso ellas se lhe podem antep?r. E quanto a substituir a escriptura em logar da voz, ella o faz por t?o excellente maneira, que lhe tem muita vantagem; pois o que a voz n?o p?de exprimir juntamente em differentes logares, e a diversas pessoas em um mesmo tempo, o faz a escriptura com grande perfei??o, podendo muitas pessoas, em differentes logares, l?r em um mesmo tempo a propria cousa: pelo que me parece que, ainda que a vossa escolha fosse boa, n?o fundastes bem a raz?o d'ella.--Certo que de ambas as partes d?stes t?o boas raz?es, que fica duvidosa a melhoria. Por?m concedendo ? pratica a excellencia, a ac??o, o modo e a gra?a de falar, que ? uma viveza a que se n?o eguala outra nenhuma lembran?a; a escriptura tem tantas grandezas que parece egualmente necessaria para a vida, pois ficava o mundo ?s escuras sem a luz da dila??o escripta; e s? na tradic??o dos homens se salvaria a memoria das cousas; e nas principaes dominaria a ignorancia com mero imperio. Por?m, deixando isto por averiguar, pois com tanta galantaria e agudeza est? tocado o que baste, quero que passemos adeante, e, por me fazerdes merc?, que me ensineis se na pratica, em voz, e na escriptura considerada tem bom logar a nossa lingua portugueza; porque ou?o de m? vontade a alguns naturaes que tratam mal d'ella e a condemnam por grosseira e limitada.

--Uma cousa vos confessarei eu, sr. Leonardo que os portuguezes s?o homens de ruim lingua, e que tambem o mostram em dizerem mal da sua, que assim na suavidade da pronuncia??o, como na gravidade e composi??o das palavras ? lingua excellente. Mas ha alguns nescios, que n?o basta que a falem mal, sen?o que se querem mostrar discretos, dizendo mal d'ella: e o que me vinga de sua ignorancia, ? que elles acreditam a sua opini?o; e os que falam bem desacreditam a ella e elles.--Bravamente ? apaixonado o sr. D. Julio pelas cousas da nossa patria: e tem raz?o, que ? divida que os nobres devem pagar com maior pontualidade ? terra que os creou. E verdadeiramente que n?o tenho a nossa lingua por grosseira, nem por bons os argumentos com que alguns querem provar que ? essa; antes ? branda para deleitar, grave para engrandecer, efficaz para mover, d?ce para pronunciar, breve para resolver, e accommodada ?s materias mais importantes da pratica e escriptura. Para falar ? engra?ada com um modo senhoril: para cantar ? suave com um certo sentimento que favorece a musica: para pr?gar ? substanciosa, com uma gravidade que auctorisa as raz?es, e as senten?as: para escrever cartas nem tem infinita copia que damne, nem brevidade esteril que a limite: para historias nem ? t?o florida que se derrame, nem t?o secca que busque o favor das alheias. A pronuncia??o n?o obriga a ferir o c?o da b?cca com aspereza, nem arrancar as palavras com vehemencia do gargalo. Escreve-se da maneira que se l?, e assim se fala. Tem de todas as linguas o melhor: a pronuncia??o da latina; a origem da grega; a familiaridade da castelhana; a brandura da franceza; a elegancia da italiana. Tem mais adagios e senten?as que todas as vulgares, em f? de sua antiguidade. E se ? lingua hebrea pela honestidade das palavras chamaram santa, certo que n?o sei eu outra que tanto fuja de palavras claras em materia descomposta quanto a nossa. E para que diga tudo, s? um mal tem, e ? que pelo pouco que lhe querem seus naturaes, a trazem mais remendada, que capa de pedinte.--Folguei extranhamente de vos ouvir por n?o ficar t?o covarde, como at? agora estava, em ouvindo murmurar da lingua portugueza; e n?o ousava, ou n?o sabia dizer a minha opini?o, a qual cuidava que me nascia do amor que lhe tenho, e que cada um tem ?s suas cousas como o corvo aos filhos, e Pindaro ?s suas trovas. Por?m quando um homem t?o bem fundado na raz?o como o doutor, e t?o auctorisado em seu parecer sustenta esta parte, nenhuma haver? j? t?o rija, que me tire o atrevimento.--Nem a lingua pois n?o ha amizade que vos fa?a perder o costume.--Perdoae-me que vos feri por n?o perder o golpe. E tornando ao que aqui se tratou para recordar o que come?amos, averiguou o doutor que a melhor maneira de escrever eram os dialogos , tocaram-se louvores da pratica e escriptura com muito engenho; declarou-se como a lingua portugueza n?o desmerece logar entre as melhores, para n'ella se escreverem materias levantadas, apraziveis, proveitosas e necessarias. Que falta entre v?s para que d'estas noites bem gastadas, d'estas duvidas bem movidas, e d'estas raz?es melhor praticadas se fa?a um ou muitos dialogos, que sem vergonha do mundo possam apparecer nas pra?as d'elle ? vista dos curiosos, e ainda dos murmuradores?--Tem Solino muita raz?o e se assim forem os dialogos como se podem formar com a pratica de alguns que est?o presentes, bem se auctorisar? a opini?o do doutor, posto que a minha fique de vencida com a vantagem que aqui tem a pratica das escripturas alheias. E pois se aproveitam t?o bem as noites n'este logar, raz?o ? que por meio d'elles se communiquem a quem se aproveite da doutrina e interesse d'ellas.--Se eu n?o dormira t?o poucas horas da passada ainda houvera de proseguir adeante e responder a isso; mas com vossa licen?a me vou recolher e amanh? accudirei mais cedo.--Acompanhemos o doutor , e levantando-se elle, se despediram todos com muita cortezia, deixando ao senhor da casa magoado de se acabar t?o depressa a conversa??o; que quem sabe estimar a que ? t?o boa, tem sentimento das horas que d'ella perde.

DIALOGO II

DA POLICIA E ESTYLO DAS CARTAS MISSIVAS

DA MANEIRA DE ESCREVER, E DA DIFFEREN?A DAS CARTAS MISSIVAS

Mui satisfeito ficou D. Julio de ouvir a Leonardo aquella noite na materia das armas; e quasi a escolhera antes, que a das cartas. Por alguns particulares, que desejava saber, quiz com m?o alheia, por n?o parecer importuno, perguntar algumas cousas a Solino, que achou junto ? sua porta; e depois de o saudar, lhe disse: Como estaes depois da noite de hontem.?--Como o dado que est? de qualquer ilharga.--Deveis de ficar do azar pois tendes t?o poucos pontos, que faltaes aos da cortezia:--Fiquei t?o cansado das da carta de Leonardo, que lhe tomei aborrecimento, e nem estou para vos servir, nem para o dizer, e perdoae-me.--Logo n?o quereis continuar na conversa??o d'esta noite.--Se a carta ha de ser t?o comprida como o sobrescripto, assim o imagino.--Pois a minha ten??o era pedir-vos que na materia das armas, que elle tocou, fizesseis hoje algumas perguntas ? minha conta sobre alguns particulares das familias d'este reino.--V?s deveis buscar armas para me matar porque das de hontem sahi eu t?o escalavrado, que determinava fugir d'ella; e sei que tem Leonardo tantos livros de armas, e gera??es, que, se o tirar a terreiro, havemos mister todo o inverno para o ouvir.--Eu me contento com saber que elle tem os livros, e assim o escuso do trabalho:

porque n'elles lerei alguns feitos particulares dos Portuguezes merecedores dos braz?es que seus successores possuem.--Bom seria acabar as cartas antes de entrar por esses feitos, e para isso vos irei acompanhando at? a casa de Leonardo, posto que tinha outra determina??o.--Porque v?s n?o falteis quero ir mais cedo. E com esta pratica, e outras que occorriam, foram passeando, e entertendo o que ficava do dia, at? que a sombra da noite, e uma chuva miuda os fez recolher a casa de Leonardo, onde os amigos esperavam j? que elles chegassem; e com Pindaro outro estudante seu companheiro, por nome Feliciano, que, vindo-o a visitar, se aproveitou da occasi?o em sua companhia. Festejaram todos a Solino; e elle vendo o hospede, de novo se lhe inclinou com mais auctoridade, e disse para os outros: Tenho inveja ? dita do senhor licenciado que veio ao abrir da carta, que cerr?mos sem elle, e com n?o pequeno trabalho.--N?o tivera eu por tal antes por grande ventura, se do passado me coubera alguma parte; e esta, que alcan?o agora com o consentimento d'estes senhores por meio de meu companheiro, tenho por muito grande favor, e merc? de todos.--Essa humildade est? acreditando mil esperan?as de vosso entendimento; e bem sei eu que o de Pindaro sabe fazer esta elei??o dos amigos tambem, como em tudo o mais ? discreto, e acertado: e para que entendaes o logar em que vos fico, sabei que eu sou o mais certo creado que elle tem entre os senhores presentes.

A esta cortezia respondeu Pindaro, e o estudante com as suas, at? que o doutor os despartiu, e disse a Leonardo:--Bem gastado era o tempo em comprimentos t?o cortez?os, e t?o devidos, se o desejo, que temos de continuar a materia da noite passada, o n?o quizera poupar todo para ella: e assim vos pe?o que me fa?aes merc?, e a todos, de ir por deante.--Tendes raz?o de me aliviardes mais depressa do cuidado, em que me mettestes. E tornando a traz, por me aproveitar dos vossos principios, dissestes que cousa era carta na origem do seu nome, os primeiros modos de escrever, e o como entre n?s se conservou; tratei do sobrescripto, da cortezia, das lettras, do signal, das dobras, e sello da carta, o que bastou para todos ficardes mais enfadados, que saudosos.

--Parecia-me a mim que a carta breve seria a de menos regras; e que n?o estava a cousa nos epithetos serem proprios ou necessarios. Uma carta p?de ser breve, e levar escriptas muitas

paginas de papel; porque p?de tratar de tantos negocios ou cousas que as occupem, mas estar?o relatadas de modo que seja a leitura comprida, e a carta breve.

--Espero que deis alguma limita??o, ou declareis a linguagem, que se deve usar n'este estilo das cartas; porque encontro muitas muito mal escriptas, cujos erros, a meu ver, nascem dos homens se can?arem muito em quererem parecer singulares.--Posto que isso pertence primeiro ao fallar, que ao escrever pois, como j? disse, devemos escrever como praticamos; as palavras da carta h?o de ser vulgares, e n?o j? populares, nem exquisitas: vulgares de modo que todos as entendam; e ao menos, que a quem se escrevem, n?o sejam peregrinas: e n?o j? populares, que sejam termos humildes, palavras baixas, que a cortezia n?o recebe: e que t?o pouco, em logar dos adagios, e senten?as, tenham anexins. Tambem se deve fugir ao termo exquisito de palavras alatinadas, ou carreteadas de outras linguas estranhas, que sempre tem o sabor da sua origem.--Assim na linguagem, como em tudo ficavamos satisfeitos, se de aquelles tres generos, em que o senhor Leonardo dividio as cartas, d?ra alguns exemplos que nos allumiaram; porque nem as regras sem elles ensinam de todo, nem se p?de perder a li??o de t?o bom estilo. O que eu n?o pedira, se foram dos vinte generos de cartas, em que um rhetorico as dividio; que, por querer dar leis, e partes a cada uma, as confundio todas.--Em tudo vos quizera satisfazer: por?m cartas mais se h?o de escrever em occasi?o, do que trazerem-se por exemplo; que ? o porque eu lhe n?o d?ra regra certa, nem das muitas, que ha bem escritas, se p?de tirar; que esse auctor, que v?s dizeis que lhe assignou vinte generos, achar? f?ra d'elles infinitas cartas, bem melhor escriptas, que as com que os elle quer auctorisar. Por?m, com o presupposto de n?o dar preceitos:

As cartas do primeiro genero, familiares, domesticas, civis, e mercantis, respeitam tanto a brevidade, que n?o podem os rhetoricos dividil-as em partes, se n?o forem nas da ora??o; e bastava para exemplo aquella de Cicero a Cornelio, que dizia s?mente:

CARTA DE CICERO A CORNELIO

"Alegrai-vos de eu n?o estar mal; pois terei o mesmo contentamento de saber que estais bem."

E muito ? mais para notar uma carta de Octavio Imperador para Caio Druzo seu sobrinho, que cont?m bem mais coisas, e avizos que palavras, e dizia:

CARTA DE OCTAVIO A DRUZO

"Pois estais no Illyrico, lembrai-vos que sois dos Cezares; que vos mandou o Senado; que sois mo?o; meu sobrinho; e cidad?o Romano."

E estas, e outras semelhantes, nem tem regra, nem deixam de ser cartas. Mas porque n?o s? nos ajudemos das antigas, mas tambem com as nossas fa?amos pestoleta; esta ? breve, e domestica, que um cortez?o escreveu a seu amigo, a quem em uma ausencia deix?ra sua casa; e dizia:

CARTA MODERNA A UM AMIGO

"Estou t?o confiado no que vos mere?o, e t?o seguro no que de vosso animo tenho conhecido, que me n?o d? cuidado a familia que deixei ? vossa conta; sen?o o trabalho, que vos dar? o sustentalla: n?o procuro saber d'ella mais, que novas de vossa saude; que em quanto a tiverdes, estar? sem sobresalto a minha vida."

? qual o amigo respondeu com brevidade; e dizia d'esta maneira:

RESPOSTA

"N'esta casa s? v?s fazeis falta; mas como sois o tudo d'ella, ainda que sobeja a minha diligencia, lhe falta tudo. No que ? servir-vos, a todos satisfa?o, sen?o o meu desejo, que ? igual ?s obriga??es que vos tenho. Vivei seguro; e gozai saude; que, em quanto a tiver, porei por vossas coisas a vida."

--N?o est?o as cartas para desprezar e para me assegurar se a vossa memoria ? archivo d'ellas, ou se as ides fingindo de repente hei de pedir por parte d'estes senhores que de alguma nos deis semelhantes exemplos.--N?o quero que acrediteis tanto o meu entendimento com mostrardes desconfian?a da memoria; mas a troco do louvor vos hei de obedecer nas que me lembrarem: e proseguindo nas da segunda especie d'este genero, me parece carta civil, e breve esta, que um amigo escreveu a outro, que mudava sua casa para a terra, onde elle vivia; e dizia:

CARTA DE UM AMIGO

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