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Read Ebook: O culto do chá by Moraes Wenceslau De

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Ebook has 46 lines and 10700 words, and 1 pages

Rita Farinha

WENCESLAU DE MORAES

O CULTO DO CH?

KOBE

Typographia do "Kobe Herald"

Gravuras de Got? Seik?d?

A Vicente Almeida d'E?a, Sebasti?o Peres Rodrigues, Bento Carqueja,

Kobe, Junho de 1905.

Wenceslau de Moraes.

O CULTO DO CH?.

Falla-se do Jap?o; nem, francamente, devera presumir-se que eu ia referir-me a um paiz qualquer occidental, onde a nossa ra?a branca floresce.

A Asia ? outra coisa: a muitos propositos immersa ainda em barbarismo, se assim se quer dizer; com mil defeitos e mil erros, que a sabia Europa aponta a dedo e algumas vezes corrige, quando pode, com a logica dos seus conho?s de tiro rapido; o que ella retem ainda, indiscutivelmente, esta Asia, ? o caracter ancestral, nada vulgar, nada rasteiro, palpitante de orgulhos de ra?a, aprazendo-se em sonhos e em chimeras, acariciando a lenda, divinizando as coisas, prodigalizando os cultos; o que ?, em todo o caso, uma maneira amavel, de ir comprehendendo a vida.

Oh, f? dos velhos tempos!... Oh, santos patriarchas de t?o varios paizes e t?o differentes seitas, tenazes campe?es, que fostes incutindo nos simples a cren?a, a esperan?a, o amor,--balsamos consoladores das duras miserias d'este mundo,--como eu vos amo, a todos!...

Meus piedosos pensamentos elevam-se n'este momento a Darum?. Segundo a tradi??o da gente japoneza, Darum?, o grande apostolo indiano do buddhismo, veio ? China ahi pelo come?o do seculo VI da nossa era christ?, e em terras chinezas pr?gou em honra da verdade, illuminando o espirito dos povos.

Mas volt?mos ao que aqui mais nos interessa, respeitante ao venerando vulto que invoquei, ajoelhado sobre as pedras. Consta mais que, em certa noite, as palpebras se lhe cerraram de fadiga, e o bom Darum? deixou-se adormecer, para s? acordar pela manh?. Ent?o, pedindo a alguem uma tesoira ou instrumento parecido, cortou a si proprio as palpebras indignas e arreme?ou-as ao solo, n'um gesto de despeito... As palpebras, por milagre, erraizaram, dando nascen?a o a um gracioso arbusto nunca visto, que medrou mui de prompto e cujas folhas, tratadas de infus?o pela agua quente, f?ram um remedio precioso contra o somno e contra o can?a?o das vigilias. Estava conhecido o ch?; tem pois na China a sua origem, e ? coisa santa, como se acava de provar. Cr? quem quer; mas devo advertir que este livro foi escripto para os crentes.

Da China, veio o ch? para as terras de Nippon, mas n?o se sabe quando.

Velhas chronicas mencionam , que em 729 da era Christ?, durante uma festa religiosa de espavento, o imperador Shomu offerecia ch? a bonzos de alta gerarchia; mas fica-se ignorando se j? antes seria conhecido... Parece que um bom abbade buddista, Dengyo Daishi, foi o primeiro que obteve a planta em solo japonez, em 805; o ch? era ent?o j? uma beberagem favorita entre os bonzos chinezes, que d'ella se serviam durante as vigilias prolongadas das suas praticas nocturnas. Mais recentemente, ainda outro, bonzo, Eisei, tendo ido ? China, de l? voltou, trazendo as sementes preciosas, e no monte Sefuri, em Chikuzen, cuidou da sua sementeira. Pouco depois, ainda mais outro bonzo de nome Mioy?, colhendo de Eisei os varios segredos de cultura, novas sementes adquiriu, e em Toga-no-o em Uji, logares visinhos de Kyoto, attentamente se entreve em cultivar o ch?; em Uji, de preferencia, f?ram os resultados excellentes. Dois seculos depois, cerca de 1400, o shogun Ashikawa Yoshimitsu imprimiu vigoroso impulso ?s plantac?es de Uji, as quaes tanto f?ram prosperando, merc? da riqueza do torr?o, que de ent?o at? hoje o ch? d'aquelle sitio tem sido celebrado como o melhor de todo o imperio; d'elle exclusivamente se serve o Imperador.

Quando, por fins de novembro, come?am os frios e as geadas e pouco tarda que as neves alvejem nos dorsos das montanhas, quando cessam as ultimas florescencias dos jardins, ? ent?o que comecam ostentando-se as bellas flores d'esta esplendida familia das camelias. V?em primeiro as sazankas, umas brancas, cutras roseas, de mimosissimas petalas frisadas; seguem-se as camelias simples, sanguineas, surdindo da rama espessa de arvores gigantes, espalhadas pelos campos; e ap?s v?em as flores cuidadas, de luxo, variando em innumeras formas, variando em innumeros tons, desde o branco de leite ate ao roseo quasi negro. Ent?o igualmente desabrocha a pequenina fl?r do ch?, que tambem ? uma camelia, subtilmente perfumada, composta de cinco petalasinhas alvas contornando e protegendo o feixe aureo dos estames.

Passando, em horas de ocio, junto dos campos de ch?, dos quaes sinto prazer em acercar-me, palestro com os alde?es e aprendo no??es varias, respeitantes ? delicada planta. N?o pode ser transplantada, nem se multiplica por estaca ou por enxerto, s? por sementeira se propaga. Os paizes quentes, como os paizes frios, s?o-lhe nocivos; prospera nos climas temperados, nos sitios lavados de ar e luz, visinhos dos cursos de agua, convindo um ligeiro declive ao solo de cultura. Os arbustos s?o dispostos em renques parallelos, de norte a sul, para que o sol lhes bata em cheio desde pela manh? at? ? noite; as plantas mais cuidadas reclamam na primavera grandes toldos de palha, que abriguem das geadas as tenras folhas dos rebentos. Durante o primeiro anno, dispensam adubos, que depois se applicam em periodos frequentes. A guerra aos vermes, aos insectos, exige zelos incessantes. No fim de quatro annos, j? o arbusto se presta ? primeira colheita; mas s?o as velhas plantas, de cem annos, de duzentos annos, as que melhor produzem.

Quem quizer tomar conhecimento com a planta de ch?, nas melhores condi?o?s de prosperidade e em mais bellas galas de aspecto pittoresco, tem de ir at? Uji, distante quinze milhas de Kyoto; escolhendo de preferencia um dos primeiros d?as de maio, quando os rebentos novos come?am vicejando, o que marca o inicio da faina da colheita. Faina e festa: a povoa??o inteira acorda da sua modorra provinciana; desperta em esperan?as, em jubilos, em actividades incan?aveis, para votar-se aos cuidados da preciosa folha; dever? presumir-se, em bom criterio, que a quadra remo?ante da primavera em flores, com aromas nas brisas e quenturas creadoras, constitue tambem um forte estimulo para a alegria repentina que se pinta nos rostos de toda aquella gente.

"Quando nasce o sol radioso Por cima d'aquelle oiteiro, Todas as aguas do rio Parecem memo um brazeiro!...

"N'estas aguas do rio d'Uji --Ta? milagrosas que s?o!-- Lavam-se todos os males De que soffre o cora??o...

No campo, as raparigas. Nas casas, os homens, as velhas, as crean?as. Ser? rara a familia que n?o tenha interesses na labuta; as grandes fabricas constituem excep??o, como em todas as primitivas industrias japonezas; em cada albergue se improvisa uma manufactura, modesta, familial, onde todos trabalham, risonhos, palestrando. O ch? ? escolhido, escaldado, posto a seccar, grelhado em fornos, enroladas as folhas ou reduzido p?, depois empacotado, guardado em latas, em caixas, em boi?es; um melindroso amanho que requer m?os incan?aveis, dedos prestimosos, cuidados inauditos, segredos de processo, meticulosidades devotas que espantam os profanos, nas quaes collabora a gente toda valida d'aquelles arredores.

Dos boi?es, passou-se gradualmente ?s chavenas, aos bules, ? gentil e complicada baixella que a infus?o foi reclamando e o luxo pondo em moda; e ora aqui est? como a ceramica no Jap?o,--faian?a ou porcellana,--que attingiu requintes de arte primorissima, deveu ao ch? e ? agua morna os seus melhores progressos.

Quando comec?ram a tomar ch? os japonezes, era este reduzido a um impalpavel p? e com elle se fazia a beberagem; depois veio o uso de empregar as folhas, apenas escolhidas e passadas pelos fornos; e ? esta, ainda hoje, a maneira mais commum de preparal-o.

O ch? joponez tem a virtude de mitigar a s?de. Assi se explica o habito dos japonezes n?o beberem agua; mesmo na for?a dos calores, em pleno agosto, a chavena de ch?, saboreada a goles, lhes d? pleno consolo. Aponta-se-lhe mais outros cond?es: excita ligeiramente o organismo, combate o can?a?o das vigilias, predisp?e ao bem estar, infiltra no cerebro n?o sei que subtil embriaguez, lucida todavia, que nos torna mais affectivos ?s sensa??es de agrado e mais aptos ?s elabora??es do pensamento

O plano do jardin submettia-se a regras determinadas, pelas quaes o engenho indigena se revelava em gra?as prodigiosas, aqui pelos contornos do lago e pelas pontesinhas que o cruzavam, alem pela escolha dos arbustos e das pedras, na inten??o ingenua e amorosa de imp?r ? vista a illus?o de uma paizagem rustica, reduzida a propor??es minusculas. Mais do que isto: a alma das coisas, o que de inexplicavel e de subtil parece emanar de um conjuncto qualquer onde os olhos se poisem,--tranquillidade das sombras, arrogancia de um tronco, ternura das relvas...--devia resaltar suggestivamente do jardinsinho japonez, imprimir-lhe um caracter, uma philosophia, acordando na mentalidade dos visitantes um sentimento de paz, de triumpho, de saudade... Claro est? que as flores de luxo, como as rosas, como as camelias, como as peonias, eram excluidas, por improprias da inten??o de quadro agreste dada ? scena.

?ra de estylo a monumental lanterna, tal como se encontra nos templos, de pedra, tanto mais valiora quanto mais esverdeada e roida de vetustos musgos, e espalhando pela noite vagas claridades coadas pelas suas frestasinhas cobertas de papel; os japonezes deleitam-se em contemplar, ap?s uma nevada, as amplas cupulas em unbella d'estas lanternas de templos e de jardins, receptaculos onde a neve poisa e se demora, em fofos vello de formas extravagantes, de deslumbrante alvura. Um outro accessorio se encontrava, cerca do pavilh?o: o peda?o de rocha bruta com uma pequena cavidade cheia de agua, onde os hospedes iam lavar as m?os antes de entrarem, como em purifica??o liturgica.

At? a linguagem empregada entre os convivas obedecia a regras de pragmatica: os assumptos de religi?o ou de politica eram banidos; a phrase devia modelar-se n'um agradavel discorrer, sem ferir melindres de ninguem. A cortezia impunha-se: preceituava-se que o hospede proferisse palavras de louvor pelo que via,--alfaias de servi?o, arranjo do aposento, horisontes em volta,--mas sem insistencia em demasia, que poderia parecer pouco sincera ou pelo menos importuna.

Variadissimos objectos devem encontrar-se no aposento, como o brazeiro, o carv?o de reserva contido n'um cestinho, a chaleira, o abano de pennas, o cachimbo, o tabaco, o pincel, o papel e a escrevaninha. Os artigos destinados particularmente ao ch?, muitas vezes contidos n'um estojo especial, s?o os seguintes: a boceta com perfumes, que antes de tudo se lan?am sobre as brazas e embalsamam o ambiente; a jarra com agua fria e a competente colher feita de um peda?o de bambu; o ch? em p? n'am cofresinho de char?o e a colherinha adjunta; duas ta?as, de barro ou de porcellana, uma usada no ver?o, de c?r clara, e outra escura, usada no inverno; um curioso utensilio feito de finas lascas de bambu reunidas em feixe, com que se agita na chavena a mistura do ch? em p? com a agua morna; finalmente a tigela onde se lavam e o peda?o de seda de finissimo tecido, com que se enxugam, as pe?as empregadas.

Tama-Guiku concluira. Ergueu-se, deslumbrante de gra?as, de atavios, de magestade. O seu rostinho meigo illuminava-se ent?o da exalta??o beatifica que lhe electrizava o espirito; dirigiu sobre n?s a ardencia negra dos seus olhos, saudou-nos reverente... reverente, n?o porque uma imfima cortezia sequer lhe merecessemos,--pobres occidentais ignaros!--mas em estricta abediencia aos preceitos rituaes; e desappareceu da scena.

A proposito d'estas divaga??es respeitantes ao ch? e ao seu culto, vem-me agora ao pensamento e ainda me compunge um dramatico episodio da existencia intima japoneza, que contado me foi ha cerca de tres annos. Vou tentar descrevel-o.

Ora, eu conhecia O-Hana; e a lenda, que por signal constitue o thema de uma notavel pe?a de theatro, n?o me era de todo estranha.

Vamos por partes. A lenda ? como segue.

Mofina sorte? Sim, embora, ? primeira vista, n?o seja o caso concebivel, quando se saiba que ambos eram jovens, gentis e animados de doces enternecimentos amorosos. Eu me explico todavia. Os velhos codigos nipponicos, ainda hoje respeitados, imp?em aos filhos o preceito de herdarem o appellido de seus paes; o filho mais velho herda a mais o encargo de chefe de familia, com a administra??o dos bens e a superintendencia no culto piedoso devido aos parentes fallecidos. ? por este processo que as genealogias n?o offerecem mysterios e as familias se eternizam, conservando religiosamente o mesmo appellido durante seculos sem conto; cessando apenas no caso excepcional de todos os descendentes acabarem, consanguineos ou n?o, pois ? de uso corrente chamar ao lar, por adop??o, filhos alheios. O filho unico pode certamente casar, e a esposa recebe o appellido do marido. A filha unica pode igualmente casar e ent?o o esposo recebe o appellido da mulher. Est?-se agora percebendo como para O-Hichi e Kichisa o problema se complicava em demazia, por serem ambos filhos unicos. Um meio s? se apresentava, o de uma das familias adoptar um filho estranho, sobre quem recahissem os encargos de uma supposta primogenitude. Mas o alvitre era quasi impraticavel, por aquelles tempos feudaes que iam correndo, dependendo da sanc??o suprema do daimy?, que a negaria, por ser o caso novo; sem j? contar com o orgulho revoltado dos paes da noiva, ou dos paes do noivo, da familia emfim que, para evitar de ser extincta, tivesse de investir um filho alheio nos deveres que competem ao legitimo.

Mas vamos depressa ao fim da historia.

Quando em Nara deparei com o meu amigo japonez, o triste fim de O-Hana esclareceu-se em breve.

Eu vi O-Hana uma s? vez, nos parques de Kyoto, quando em peregrina??o primaveral se vae contemplar, ? luz da lua, a celebre cerejeira de Guion, toda vestida de pequeninas petalas.

O-Hana e Naotar? amaram-se.. N?o se sabe porque. Porque eram ambos jovens, visinhos, conhecidos; e em circunstancias semelhantes a juventude attrahe a juventude...

Quando esta inclina??o foi conhecida, as duas familias irromperam em n?o dissimulados azedumes. O casamento era impossivel. Se a adop??o de um filho alheio podia resolver em theoria o problema, quem vinha sujeitar-se ao sacrificio? Os Yamaguchi? Os Fukumoto? Mas nem uns nem outros, com os diabos!... Os nomes das duas familias, procedentes de uma linhagem t?o remota que em v?o se tentaria investigar-lhes a origem, gosavam em todo o Imperio de um prestigo inconfundivel, conquistado durante annos sem conto pela pobidade mercantil dos seus negocios, pela excellencia do ch? da sua lavra, pela nobre chientela nos castelos; podendo apenas p?r-se em duvida, se o ch? dos Yamaguchi preferival ao ch? dos Fukumoto. Ora,--merc? de um capricho de estouvados,--investir, por uma adop??o do acaso, um estranho na posse de tal nome, e ungil-o dos nobres encargos que competem a um futuro chefe de familia--Fukumoto ou Yamaguchi,--nem por brincadeira se propunha!... Que O-Hana e Naotar? se casassem, intendia-se; era esse mesmo o seu dever, de perpetuar pela prole os nomes dos av?s; mas confiassem no bom tacto dos paes, que saberiam escolher-lhes noivos do seu agrado e em condi??es de n?o virem parturbar a paz das familias e ferir o amor das tradi??es.

Muito bem. Quando os dois namorados se convenceram da impossibilidade de viverem um para outro, tiveram certa noite uma furtiva entrevista ? beira do Ujigawa, a pittoresca ribeira, que ent?o serpeava em grande cheia de aguas, resultado das ultimas chuvas copiosas. Deram-se as m?os, parece; sorriam-se um para o outro; n?o se sabe o que segredaram entre si, porque ninguem esta alli para os ouvir...

Quando, ao romper do dia, as mo?as de Uji seguiam para a apanha do ch?, em ranchos galhofeiros, quedaram-se de repente junto ao rio, cheias do espanto, de pavor, vendo a boiar dois corpos detidos na maranha dos juncos, rigidos, lividos, mortos, porem sorrindo ainda e dando-se ainda as m?os...

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"N'estas aguas do rio d'Uji, --T?o milagrosas que s?o!-- Lavam-se todos os males De que soffre o cora??o...

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