Read Ebook: Captain Ravenshaw; Or The Maid of Cheapside. A Romance of Elizabethan London by Stephens Robert Neilson Pyle Howard Illustrator
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Ebook has 1864 lines and 83697 words, and 38 pages
Rita Farinha
Reservados todos os direitos de reproduc??o nos paizes que adheriram ? Conven??o de Berne; Brasil: Lei n.^o 2577 de 17 de Janeiro de 1912; Portugal: Decreto de 18 de Mar?o de 1911.
HUMUS
DO AUTOR
EDI??ES DA RENASCEN?A PORTUGUESA
O Cerco do Porto, contado por uma testemunha, o Coronel Owen--Prefacio e notas .
El-Rei Junot .
Memorias, 1.^o vol. .
Humus .
RAUL BRAND?O
Humus
O que tu v?s ? bello; mais bello o que suspeitas; e o que ignoras muito mais bello ainda.
D'um autor desconhecido.
EDITORES Renascen?a Portuguesa--Porto ANNUARIO DO BRASIL--RIO DE JANEIRO
AO MESTRE COLUMBANO
A VILLA
Ou?o sempre o mesmo ruido de morte que devagar roe e persiste...
Uma villa encardida--ruas desertas--pateos de lages soerguidas pelo unico esfor?o da erva--o castelo--restos intactos de muralha que n?o teem serventia: uma escada encravada nos alveolos das paredes n?o conduz a nenhures. S? uma figueira brava conseguiu meter-se nos intersticios das pedras e d'ellas extrae succo e vida. A torre--a porta da S? com os santos nos seus nichos--a pra?a com arvores rachiticas e um coreto de zinco. Sobre isto um tom denegrido e uniforme: a humidade entranhou-se na pedra, o sol entranhou-se na humidade. Nos corredores as aranhas tecem imutaveis teias de silencio e tedio e uma cinza invisivel, manias, regras, habitos, vae lentamente soterrando tudo. Vi n?o sei onde, n'um jardim abandonado--inverno e folhas seccas--entre buxos do tamanho d'arvores, estatuas de granito a que o tempo corroera as fei??es. Puira-as e a express?o n?o era grotesca mas dolorosa. Sentia-se um esfor?o enorme para se arrancarem ? pedra. Na realidade isto ? como Pompeia um vasto sepulchro: aqui se enterraram todos os nossos sonhos... Sob estas capas de vulgaridade ha talvez sonho e d?r que a ninharia e o habito n?o deixam vir ? superficie. Afigura-se-me que estes s?res est?o encerrados n'um involucro de pedra: talvez queiram falar, talvez n?o possam falar.
Silencio. Ponho o ouvido ? escuta e ou?o sempre o trabalho persistente do caruncho que roe h? seculos na madeira e nas almas.
As paix?es dormem, o riso posti?o creou cama, as m?os habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos. A mesma teia pegajosa envolve e neutralisa, e s? um ruido sobreleva, o da morte, que tem deante de si o tempo ilimitado para roer. H? aqui odios que minam e contraminam, mas como o tempo chega para tudo, cada anno minam um palmo. A paciencia ? infinita e mete espig?es pela terra dentro: adquiriu a c?r da pedra e todos os dias cresce uma polegada. A ambi??o n?o avan?a um p? sem ter o outro assente, a manha anda e desanda, e, por mais que se escute, n?o se lhe ouvem os passos. Na aparencia ? a insignificancia a lei da vida; ? a insignificancia que governa a villa. ? a paciencia, que espera hoje, amanh?, com o mesmo sorriso humilde:--Tem paciencia--e os seus dedos ageis tecem uma teia de ferro. N?o h? obstaculo que a esmore?a.--Tem paciencia--e rodeia, volta atraz, espera anno atraz d'anno, e olha com os mesmos olhos sem express?o e o mesmo sorriso estampado. Paciencia... paciencia... J? a mentira ? d'outra casta, faz-se de mil c?res e toda a gente a acha agradavel.--Pois sim... pois sim... N?o se passa nada, n?o se passa nada. Todos os dias dizemos as mesmas palavras, cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras. Petrificam-se os habitos lentamente acumulados. O tempo moe: moe a ambi??o e o fel e torna as figuras grotescas.
Reparem, v?-se daqui a villa toda... L? est? a Adelia, o Pires e a Pires como figuras de cera. Ninguem mexe. N'um canto mais escuro a prima Angelica n?o levanta a cabe?a de sobre a meia. Tanta inveja ruminou que desaprendeu de falar. Chega o ch?, toma o ch?, e apega-se logo ? mesma meia, a que m?os caridosas todos os dias desfazem as malhas, para ella, mal se ergue, recome?ar a tarefa. Um dia--uma semana--um seculo--e s? o pendulo invisivel vae e vem com a mesma regularidade implacavel--p'ra a morte! p'ra a morte! p'ra a morte!
Passou um minuto ou um seculo? Sobre o granito salitroso assenta outra camada denegrida, e as horas caem sobre a villa como g?tas d'agua d'uma clepsydra. De tanto v?r as pedras j? n?o reparo nas pedras. A morte roda na ponta dos p?s e ninguem ouve seus passos. Todos os dias os leva, todos os dias toca a finados. O nada ? espera e a D. Procopia a abrir a boca com somno, como se n?o tivesse deante de si a eternidade para dormir. Tudo isto se passa como se tudo isto n?o tivesse importancia nenhuma, tudo isto se passa como se tudo isto n?o f?sse um drama e todos os dramas, um minuto e todos os minutos...
N?o h? annos, h? seculos que dura esta bisca de tres--e os gestos s?o cada vez mais lentos. Desde que o mundo ? mundo que as velhas se curvam sobre a mesma meza do jogo. O jogo banal ? a bisca--o jogo ? o da morte... O candieiro ilumina e a sombra roe as phisionomias, a magestosa Theodora, a Adelia, a Eleutheria das Eleutherias, o padre. Salienta-se do escuro uma boca que remoe, a da D. Bibliotheca. Os padres exaltam-na, a Egreja exalta a sua caridade, que rebusca a desgra?a para lhe dar tres vintens. S? destingo, despegadas dos craneos, as orelhas do respeitavel Elias de Melo e do impoluto Melias de Melo, lividos como dois fantasmas. Ambos regulam a consciencia como quem d? corda a um relogio. Dividas s?o dividas. Tudo isto parece que fluctua debaixo d'agua, que esverdeia debaixo d'agua. A luz do candieiro ilumina as m?os da D. Leocadia, que p?e acima de tudo o seu dever, e que leva para casa uma orf? a quem sustenta e que lhe entrapa as pernas: osseas e seccas enchem a sala toda, o mundo todo...
N?o sei bem se estou morto ou se estou vivo... Decorre um anno e outro anno ainda. O relento sabe bem, e o tempo passa, o tempo gasta-as como o salitre aos santos nos seus nichos. Se o desespero augmenta n?o se traduz em palavras. A D. Procopia odeia a D. Bibliotheca, mas nem ella sabe o que est? por traz d'aquelle odio, contido pelo inferno. Toda a gente se habitua ? vida. Matar matava-a eu, mas varias palavras me deteem. Detem-me tambem um nada... Chegamos todos ao ponto em que a vida se esclarece ? luz do inferno. Mas ninguem arrisca um passo definitivo.
As velhas com o tempo adquiriram a mesma express?o, com o tempo chegaram a temer um desenlace. Debru?adas sobre a meza as figuras n?o bolem. N?o bolem outras figuras que se envolvem no escuro, e o que me interessa n?o s?o as palavras do padre--Jogo;--nem o que a Adelia diz baixinho ? Eleutheria, para que a velha temerosa ou?a:--A nossa Theodora est? cada vez mais mo?a!...--o que me interessa s?o as figuras invisiveis: ? a d?r d'essas figuras imoveis, e sobre ellas outra figura maior, curva e atenta, que ha seculos espera o desenlace.
A villa petrifica-se, a villa abjecta cria o mesmo bolor. Mora aqui a insignificancia e at? ? insignificancia o tempo imprime caracter. Moram na viella ingreme e cascosa, que rev? humidade em pleno ver?o, velhas a quem s? restam palavras, presas, alimentadas, encarni?adas, como um doido sobre uma cor?a de lata que lhes enche o mundo todo. Mora d'um lado o espanto, do outr? o absurdo. E todos ? uma afastam e repelem de si a vida. Mora aqui a Telles que passa a vida a limpar os moveis, s? e fechada com os moveis reluzentes, talvez resto d'um sonho a que se apega com desespero, e velhas s? mesuras, s? baba, s? rancor. Ter uma mania e pensar n'ella com obstina??o! Creal-a. Ter uma mania e v?l-a crescer como um filho!... Mora aqui a D. Restituta, sempre a acenar que sim ? vida, e a Ursula, cuja miss?o no mundo ? fazer rir os outros.
Cabem aqui s?res que fazem da vida um habito e que conseguem olhar o c?o com indiferen?a e a vida sem sobresalto, e esta mixordia de ridiculo e de figuras somiticas. Mora aqui, paredes meias com a colegiada, o Santo, que de quando em quando sae do torp?r e clama:--O inferno! o inferno!--Moram as Telles, e as Telles odeiam as Souzas. Moram as Fonsecas, e as Fonsecas passam a vida, como bonecas desconjuntadas, a fazer cortezias. Moram as Albergarias, e as Albergarias s? teem um fim na existencia: estrear todos os semestres um vestido no jardim. Moram os que moem, remoem e esmoem, os que se fecham ? pressa e por dentro com uma mania, e os que se aborrecem um dia, uma semana, um anno, at? chegar a hora pacata do solo ou a hora tremenda da morte.
Mora aqui o egoismo que faz da vida um casulo, e a ambi??o que gasta os dentes por casa, o que enche a existencia de rancores e, atraz d'anno de chicana, consome outro anno de chicana. Cabem aqui dentro as velhas scismaticas, atraz de interesses, de paix?es ou de simples ninharias, dissolvendo-se no ether, e logo substituidas por outras velhas, com as mesmas ou outras plumas nos penantes, com os mesmos ou outros ridiculos, fedorentas e maniacas; os homens a quem se foram apegando pela vida f?ra dedadas de mentira, promptos para a cova--e o Gabiru e o seu sonho. Cabe aqui o ceu e as lambisgoias com as suas mesuras, a morte e a bisca de tres. E cabe aqui tambem uma velha creada, que se n?o tira deante dos meus olhos. Obsidia-me. Carrega. Obedece. Serve as outras velhas todas. A Joanna ? uma velha estupida.
Serviu primeiro na villa, serviu depois na cidade. Serviu um anthropologista exotico, que fundira cem contos a juntar caveiras, e de quem a Joanna dizia ao amollecer-lhe os ed?mas dos p?s:--Este senhor ? um 2.^o Cam?es!--Serviu a D. Herminia e a D. Hermengarda. Serviu com uma saia r?ta, as m?os sujas de lavar a lou?a, uma camisa, os usos e seis mil reis de soldada. Lavou, esfregou, cheira mal. Serviu o tropel, a miseria, o riso, que caminha para a morte com um vestido d'aparato e um chapeu de plumas na cabe?a. Para contar fio a fio a sua historia bastava dizer como as m?os se lhe f?ram deformando e creando ranhuras, nodosidades, codeas, como as m?os se foram parecendo com a casca d'uma arvore. O frio gretou-lh'as, a humidade entranhou-se, a lenha que rachou endureceu-lh'as. Sempre a comparei ? macieira do quintal: ? inocente e util e n?o ocupa logar. A vida gasta-a, corroem-na as lagrimas, e ella est? aqui tal qual como quando entrou para casa da D. Hermengarda. Faz rir e faz chorar. Os meninos borraram-na--adorou os meninos. Os doentes que ninguem quer aturar, atura-os a Joanna. J? ninguem extranha--nem ella--que a Joanna aguente, e a manh? a encontre de p?, a rachar a lenha, a acender o lume, a aquecer a agua. H? s?res creados de proposito para os servi?os grosseiros. Por dentro a Joanna ? s? ternura, por f?ra a Joanna ? denegrida. A mesma fealdade reveste as pedras. Reveste tambem as arvores.
? uma velha alta e secca, com o peito raso. O habito de carregar ? cabe?a endireitou-a como um espeque, o habito das caminhadas espalmou-lhe os p?s: a recoveira assenta sobre bases solidas. Parece um homem com as orelhas despegadas do craneo e olhos inocentes de bicho. ? d'estas creaturas que d?o aos outros em troca da soldada o melhor do seu s?r, que se apegam aos filhos alheios e choram sobre todas as desgra?as. E ainda por cima dedicam-se, e quando as mandam embora, porque n?o teem serventia, p?em-se a chorar nas escadas.--? preciso escodeal-a--asseverou a D. Hermengarda quando lhe foi em pequena para casa. Escodeia-a. Noite velha e j? ella bate de cima com a tranca no soalho, a chamal-a.--E n?o te servindo a porta da rua ? a serventia dos c?es.--Mas ella apega-se. Nunca teve outra ama como aquella senhora. Venera-a. Annos depois diz das pancadas:--Merecia-as.--J? n?o ? preciso chamal-a: a Joanna ergue-se n'um sobresalto, alta noite, noite negra, e dorme com um olho fechado e outro aberto. Velha, tonta, abre de quando em quando os olhos, p?e o ouvido ? escuta num movimento instinctivo, ? espera de uma imaginaria ordem: ouve sempre a voz da D. Hermengarda a chamal-a.
Mal se comprehende que depois d'uma vida inteira, esta mulher conserve intacta a inocencia d'uma crean?a e o pasmo dos olhos ? fl?r do rosto. Trambulh?es, fome, o frio da pobreza--o peor--e, apezar de amolgada, com uma saia de estamenha, no pesco?o pelles, as m?os gretadas de lavar a lou?a, uma coisa que se n?o exprime com palavras, um balbuciar, um riso... Misturou ? vida ternura. Misturou a isto a sua propria vida. Aqueceu isto a bafo.
Tem as m?os como cepos.
Debaixo d'estes tectos, entre cada quatro paredes, cada um procura reduzir a vida a uma insignificancia. Todo o trabalho insano ? este: reduzir a vida a uma insignificancia, edificar um muro feito de pequenas coisas deante da vida. Tapal-a, escondel-a, esquecel-a. O sino toca a finados, j? ninguem ouve o som a finados. A morte reduz-se a uma cerimonia, em que a gente se veste de luto e deixa cart?es de visita. Se eu podesse restringia a vida a um tom neutro, a um s? cheiro, o m?fo, e a villa a c?r de mataborr?o. Seres e coisas criam o mesmo bol?r, como uma vegeta??o cryptogamica, nascida ao acaso n'um sitio humido. Teem o seu rei, as suas paix?es e um cheirinho suspeito. Desaparecem, resurgem sem raz?o aparente d'um dia para o outro n'um palmo do universo que se lhes afigura o mundo todo. Absorvem os mesmos saes, exhalam os mesmos gazes, e supuram uma escorrencia phosphorecente, que corresponde talvez a sentimentos, a vicios ou a discuss?es sobre a imortalidade da alma.
Sempre as mesmas coisas repetidas, as mesmas palavras, os mesmos habitos. Construimos ao lado da vida outra vida que acabou por nos dominar. Vamos at? ? c?va com palavras. Submetem-nos, subjugam-nos. Pesam toneladas, teem a espessura de montanhas. S?o as palavras que nos conteem, s?o as palavras que nos conduzem. Toda a gente forceja por crear uma atmosfera que a arranque ? vida e ? morte. O sonho e a d?r revestem-se de pedra, a vida consciente ? grotesca, a outra est? assolapada.
Remoem hoje, amanh?, sempre as mesmas palavras vulgares, para n?o pronunciarem as palavras definitivas. Toda a gente fala no c?o, mas quantos passaram no mundo sem ter olhado o c?o na sua profunda, na sua temerosa realidade? O nome basta-nos para lidar com elle. Nenhum de n?s repara no que est? por traz de cada sylaba: afundamos as almas em restos, em palavras, em cinza. Construimos scenarios e convencionamos que a vida se passasse segundo certas regras. Isto ? a consciencia--isto ? o infinito... Est? tudo catalogado. Na realidade jogamos a bisca entre a vida e a morte, baseados em palavras e sons. E, como a existencia ? monotona, o tempo chega para tudo, o tempo dura seculos. Formam-se assim lentamente crostas: dentro de cada s?r, como dentro das casas de granito salitroso, as paix?es tecem na escurid?o e no silencio, teias de escurid?o e de silencio. Na botica somnolenta ao pae succede o filho sobre o taboleiro de gam?o. Quero resistir, afundo-me. Come?o a perceber que o habito ? que me fez suportar a vida. ?s vezes acordo com este grito:--A morte! a morte!--e debalde arredo o estupido aguilh?o. Choro sobre mim mesmo como sobre um sepulchro vazio. Oh como a vida peza, como este unico minuto com a morte pela eternidade peza! Como a vida esplendida ? aborrecida e inutil! N?o se passa nada! n?o se passa nada e eu sinto aqui ao lado outra vida que me mete medo e que n?o quero v?r. Essa vida talvez seja a minha verdadeira vida. Mas o peor ? que eu percebo que, se se apodera de mim, n?o posso mais viver. Agarro-me com desespero ao habito e ?s palavras. Tu n?o existes! tu n?o existes! O que existe ? isto com que lido todos os dias, as palavras que digo todos os dias, os s?res com quem falo todos os dias.--E tu rodeias-me, tu reclamas-me e queres viver comigo para todo o sempre. N?o te posso v?r!...
Se h? momentos em que o caix?o que um galego leva ?s costas me chama ? realidade, ao espanto, desvio logo o olhar e reentro ? pressa na vida comesinha. Finjo que sorrio e esque?o. Mas sempre n?o posso! Anno atraz d'anno n?o posso! N?o h? mais nada! n?o h? mais do que estas figuras paradas, e as horas verdes que de espa?o a espa?o caem como g?tas d'agua no fundo d'um subterraneo. Outro anno ainda! outro passo ainda para a morte! Sinto uma d?r sem gritos por traz da immobilidade. Cada hora ? menos uma hora na minha vida. E o tempo foje, o tempo c?r de mataborr?o que ao granito salitroso junta camada denegrida, e ?s almas sepultadas outra pazada de cinza... H? momentos em que as figuras teem tanta vida como os santos imoveis nos seus nichos--mas h? momentos em que cada um redobra de propor??es, h? momentos em que a vida se me afigura iluminada por outra claridade. H? momentos em que cada um grita:--Eu n?o vivi! eu n?o vivi!--H? momentos em que deparamos com outra figura maior que nos mete medo. A vida ? s? isto? Por mais que queira n?o posso desfazer-me de pequenas ac??es, de pequenos ridiculos, n?o posso desfazer-me de imbecilidades nem d'este s?r esfarrapado que vae de p?lo a p?lo. Tenho de aturar ao mesmo tempo esta id?a e este gesto ridiculo. Tenho de ser grotesco ao lado da vida e da morte. Mesmo quando estou s? o meu riso ? idiota. E estou s? e a noite. Por traz daquella parede fica o c?o infinito. Para n?o morrer d'espanto, para poder com isto, para n?o ficar s? e o doido, ? que inventei a insignificancia, as palavras, a honra e o dever, a consciencia e o inferno.
E ainda o que nos vale s?o as palavras, para termos a que nos agarrar.
? ent?o um mundo de formulas a que eu obede?o e tu obedeces? Sem elle n?o poderiamos existir. Se vissemos o que est? por traz n?o podiamos existir. O nosso mundo n?o ? real: vivemos n'um mundo como eu o comprehendo e o explico. N?o temos outro. Estamos aqui como peixes n'um aquario. E sentindo que h? outra vida ao nosso lado, vamos at? ? c?va sem dar por ella. E n?o s? esta vida monstruosa e grotesca ? a unica que podemos viver, como ? a unica que defendemos com desespero.--Pois sim... pois sim...--Estamos aqui a representar. Estamos aqui todos ao lado da morte e do espanto a jogar a bisca de tres. Estamos aqui a matar o tempo. Este passo, que ? unico e um s?, damol-o como se fosse uma insignificancia. Mais fundo: n?o existem sen?o sons repercutidos. Decerto n?o passamos de echos. Submeto-me, subjugas-me. J? n?o reparo, j? vejo turvo.--Jogo!--E de repente todo o meu s?r ? sacudido pelo espanto que tacteia ? minha roda. Raras vezes entramos em contacto, mas sinto-o aqui ao meu lado--sem nos chegarmos a entender. Nem quero! nem quero! Se me alheio um momento dou um grito de d?r. Escaldo-me.
Na verdade o que eu n?o posso ? v?r, o que eu n?o quero ? v?r! A villa regula-se por habitos e regras seculares--mas h? outra coisa enorme para l? do scenario de que me rodeio. Para n?o ter medo criei eu isto, para a n?o v?r criou o Santo o inferno. H? outra coisa esfarrapada e dorida.--Jogo!--Cada vez me sinto mais reles, cada vez as palavras me parecem mais gastas. H? outro s?r que vae de p?lo a p?lo... Esta figura grotesca n?o ? a minha figura. O salitre roeu os santos nos seus nichos--roeu-os tambem o sonho... Curvado sobre a mesa repito os mesmos gestos inuteis para n?o desatar aos gritos.--Jogo!--Isto para fingir que ? indiferente o que nos rodeia, que estamos habituados ao que nos rodeia, que sorrimos ao que nos rodeia! Est? alli a morte--est? aqui a vida--est? aqui o espanto--e s? a ninharia consegue deitar raizes profundas.
Fecho os olhos. A chuva desaba interminavelmente do c?o, e na luz turva vejo sempre a villa, com as mesmas figuras de museu sentadas na mesma sala... Insignificancia, insignificancia, insignificancia. Portas chapeadas que rangem nos gonzos como portas de pris?o, fachadas com os vidros partidos, e uma, duas, tres camadas de p? sobrepostas. Lojas terreas d'onde vem um bafo humido que trespassa... Como todas as almas, todas as janelas est?o perras, e o tempo vae substituindo uma figura por outra figura, uma pedra por outra pedra. Ponho-as em fila deante de mim, com os seus penantes usados, grotescas e maniacas. Considero. Vejo vir os gestos, as cortezias, as ac??es do confim dos seculos. Isto ? nada--? vulgar e quotidiano. ? uma aparencia.
A villa ? um simulacro. Melhor: a vida ? um simulacro.
Atraz desta villa h? outra villa maior. A lentid?o, o gesto usado, a meia tinta mesmo em plena luz, toldam-me a vis?o. Sobre cada s?r cahiu uma camada de p?. A villa ? isto--e a villa n?o ? isto. Que me importa a Adelia, um dia d'inveja, um dia de aqu?escencia, um sorriso, baba, mesura atraz de mesura? Outra velha mexe por traz desta velha mesquinha. As lettras assignadas, as lettras protestadas d'este s?r absorto, o exagero minusculo, teem outra significa??o. A realidade ? a manha, a astucia que cada um p?e em jogo. N?o h? velhas com cartas na m?o; h? orgulho, soberba, inveja paciente. H? intuitos, cautela de quem caminha na ponta dos p?s. H? for?as e experiencia, avareza e astucia. E mais fundo outro, outro sobterraneo... Todas as palavras que se empregam teem, al?m da significa??o banal, uma significa??o que cada um peza e calcula,--e outra significa??o superior. H? palavras que requerem uma pausa e silencio, e h? palavras que ? preciso afundar logo n'outras palavras. H? pelo menos dois s?res n'este homem que toda a gente conhece, pautado, regrado, methodico. Elle e o doido morto por fazer esgares. Elle e o doido que s? consegue comprimir ? for?a de pontualidade. Esta velha n?o ? a velha com quem lidamos--? outra. Tem tido um trabalh?o para fazer mal, nunca conseguiu fazel-o. Se se arrisca, h?-de contar comsigo mesma para se contrariar. ? uma discuss?o que n?o acaba, com a bocca amarga, arrependimento--e por fim n?o realisa uma catastrophe authentica, que a engrande?a. Curvada sobre o lar remexe sempre as mesmas cinzas frias...
Todos se defendem. Por isso existe uma certa grandeza em repetir todos os dias a mesma coisa. O homem s? vive de detalhes e as manias teem uma for?a enorme: s?o ellas que nos sustentam.
Reparo melhor na vida secreta e na vida subterranea. Comprehendo como ? dificil viver todos os dias e todas as horas, como atravez de tudo ? for?oso seguir um fio invisivel--e ser reles e sorrir. Gasta-me uma for?a superior, e com todas as chagas e todos os vicios, com a vida mesquinha e a vida quotidiana, o nada, o penante usado, o fel e o vinagre, tenho de arcar com uma coisa immensa de que me separa apenas um tabique. Tudo o que fa?o ? um arremedo. Est? alli outra coisa quando falo, quando me calo, quando me rio. E falo mais alto porque a ou?o mexer... Todos suportam o drama de todos os dias, o cinzento de todos os dias, as aflic??es e a usura que tornam as figuras ridiculas e co?adas. Todos suportam os tratos que envelhecem e preparam para a c?va, os pequenos interesses, a inveja, a ambi??o, a d?r phisica. Todos os dias a Hermengarda amarga os braz?es da Bibliotheca, a Bisborria todos os dias scisma na sua respeitabilidade, e aturam o azedo que pouco e pouco se deposita nas almas--e com isto uma coisa desconforme, que se levanta e deita comnosco, n?o se tira do nosso lado, em quem ninguem fala e com quem temos por for?a de cohabitar; deante de quem ? for?oso ser vulgar e dissimulado, fazendo que a n?o vemos e com ella ? cabeceira da cama...
Atraz da insignificancia andam os c?os, os mundos, os vagalh?es doirados. Anda o desespero. Anda o instincto feroz. Atraz disto andam as enxurradas de soes e de pedras, e os mortos mais vivos do que quando estavam vivos. Atraz do tabique e das palavras anda a Vida e a Morte e outras figuras tremendas. Atraz das palavras com que te iludes, de que te sustentas, das palavras magicas, sinto uma coisa descabelada e phrenetica, o espanto, a mixordia, a d?r, as for?as monstruosas e cegas.
Em certas ocasi?es, se as palavras e a insignificancia desaparecessem da vida, s? ficava de p? o espanto.
S? a insignificancia nos permite viver. Sem ella j? o doido que em n?s prega, tinha tomado conta do mundo. A insignificancia comprime uma for?a desabalada.
Para n?o v?r, para n?o ouvir, ? que nos curvamos sobre a mesa de jogo. Para te n?o ouvires a ti mesmo, para n?o v?res o que te gasta a todos os minutos e a todas as horas, usura immensa que n?o sentes e que te vae levar para o escantilh?o sofrego, que te vae mergulhar no silencio profundo. Usura de todos os instantes. Gasta-nos, desgasta-nos. E todos os dias acordamos mais velhos, todos os dias acordamos mais inuteis. Todos os dias acordamos com mais f?l. E todos os dias com mesuras, sem gritos de terror, nos curvamos sobre esta mesa de jogo, n?o vendo, fingindo que n?o existe, o espanto que est? ao nosso lado, e o espanto peor que trazemos comnosco. Chama-se a isto o quotidiano. Isto n?o tem importancia nenhuma. Com isto enchemos a vida at? chegar a morte. Esta mesa de jogo ? a nossa existencia vulgar, a vida de todos os dias, com o galope da outra vida ao lado. N?o se passa nada! N?o se passa nada! No ver?o o calor sufoca, d'inverno a mesma nuvem impregna o granito, e apega-se, amollece, dissolve pilares das janellas, casebres e a oliveira da pra?a, s? tronco e duas folhinhas cinzentas. Em volta um circulo de montanhas, descarnadas e atentas, espera a tragedia--e as montanhas n?o desistem. De quando em quando, na solid?o que ? noite redobra, cahem do alto da S? as badaladas, uma a uma, pausa a pausa. O som tem um peso desconforme.
Estamos aqui todos ? espera da morte! estamos aqui todos ? espera da morte!
O SONHO
Chove. Cada vez vejo mais turvo, cada vez tenho mais medo. Estamos enterrados em conven??es at? ao pesco?o: usamos as mesmas palavras, fazemos os mesmos gestos. A poeira entranhada sufoca-nos. Pega-se. Adhere. H? dias em que n?o distingo estes s?res da minha propria alma; h? dias em que atravez das mascaras vejo outras phisionomias, e, sob a impassibilidade, d?r; h? dias em que o c?o e o inferno esperam e desesperam. Presinto uma vida oculta, a quest?o ? fazel-a vir ? supura??o.
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