Read Ebook: The Sportsman's Club Afloat by Castlemon Harry
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Ebook has 972 lines and 26507 words, and 20 pages
E eu, solicito e curioso:
--? certo, respondeu, animada pela minha curiosidade, estou fatigadissima. Venho de longe, de muito longe. Sabe v.?--ha um facto que se d? semelhantemente em todos os paizes. ? a impotencia, a impostura da medicina em face da doen?a. Todo o seu empenho ? encobrir as deficiencias do mister, illudir, mystificar os pobres doentes.
--Emfim, sublinhou com um riso amargo, n?o podemos querer-lhe mal!
A despeito de todos os epigrammas com que temos flagellado os medicos--? menor coisa os procuramos. N?o occorre chamar qualquer artifice... Na maioria dos casos valeria o mesmo.
Envenenei-me outro dia com um ramo de flores de madre-silva. Tive um prazer doloroso na aspira??o desse aroma, que sorvi cheia de sensualidade, at? cahir sobre uma banqueta, tonteada, numa syncope que foi o espanto do medico que me tratou.
Quando cobrei animo e lhe expliquei o que se pass?ra, suppoz-me doida; sobretudo quando lhe falei em envenenamento. Affirmou que a flor da madre-silva n?o era veneno catalogado. E, como o convidasse a explicar as minhas perturba??es--a syncope, a garganta em fogo, a s?de, os espasmos, o arrefecimento,--todo o cortejo da intoxica??o violenta, pareceu resolver-se pelo diagnostico que aventei; fingiu tratar-me, e arrimou-se, em materia de explica??o, ao velho bord?o--de que eu era uma hysterica; que o meu caso, devia signalar, era curioso; que cada hysterica tinha, de facto, as suas particularidades, perturba??es, exigencias, um tratamento proprio. E com isso me calou...
Que lucrava em amesquinh?-lo? Se nunca amesquinhara, conscientemente, alguem, menos me occorria maltratar quem, afinal, reflectia, segundo o rito da sciencia, uma trapa?a intelligente que podia ter satisfeito outros, menos exigentes do que eu.
Maria Peregrina falava com enthusiasmo, mas de repente abrandou-se para dizer, quasi indolente:
--Agora reparo, estou a incommod?-lo. Que pode interessar-lhe a historia das minhas fraquezas?
Ainda na hypothese de que me ou?a com vagar, os factos que illustram o meu caso, se lhe interessassem, mago?-lo-iam. E n?o tenho o direito de pagar a gentileza de ha pouco, lamuriando-lhe a minha vida, desagradavel. Mas esta n?o pode, n?o deve mesmo interess?-lo.
Protestei, e f?-lo de forma que me pareceu conquistar-lhe a confian?a.
Enquanto conversavamos, Peregrina mal se distrahia de Violet, para quem olhava a miudo, e que, a meu lado, deante della, seguia a conversa com meia atten??o.
? quasi t?o difficil encontrar quem ou?a bem como quem fale bem. Violet abria clareiras de indifferen?a na historia da companheira, uma historia exotica, singularmente complicada, em que li todo um indice de miseria.
Pareceu-me que Violet, talvez pouco conhecedora de portugu?s, n?o podia ouvir bem. A maior parte dos esclarecimentos de Peregrina devia escapar ? sua percep??o; mas um n?o sei que de affinidade dava o tra?o de uni?o entre aquellas almas, que eu suppunha fundamentalmente diversas.
O comboio parou.
--Estamos na Trofa, informou um passageiro.
Violet desceu da r?de o saco de camur?a-creme, preparando-se para sahir.
--J??!--perguntou Peregrina, esquecida dos trabalhos da viagem, ou na previs?o de peores horas.
E, buscando um bilhete, entregou-me o nome lithographado e esclareceu:
--Vou para Lares, a quatro leguas de Guimar?es. Tenho l? sombras e silencio. Venho fugida ? esturdia civilizada, ?s grandes illumina??es com que a cidade estraga a Noite. S?o as pragas que mais temo--o barulho e a muita luz!
Emfim, se algum dia quizer descansar, visitar a toupeira de Lares...
--Tambem des?o, vou para Guimar?es. Muito obrigado.
As paredes que mostrava ao publico--a um pequeno publico, eram os preconceitos de toda a ordem que lhe entravavam a ac??o.
Soffrera m?s vontades, vexames e desabaf?ra em paginas notaveis, mau grado serem decadentes, doentias. Para toda a parte para que voltava o espirito encontrava paredes, escuras e espessas, tatuadas de obscenidades, allusivas a predilec??es suas.
A sociedade destin?ra-lhe uma cella estreita, quando a natureza lhe dera um talento largo e uma sensibilidade enorme, caldeados dum certo fatalismo sensual, que lhe abarcava e impopularizava a obra.
Assentava, plena de orgulho, que essa impopularidade era o contraste do seu genio aventuroso. Mas a sensibilidade abria conflicto com a moral m?dia; e dahi as torturas. N?o pretendia que a seguissem e admirassem nos seus delirios; aspirava a que a respeitassem em homenagem ao genio dos seus defeitos, que amava acima da sua obra.
Ora este conflicto, os v?os, as quedas bruscas, tudo o que no temperamento pode haver de grande, e tudo o que a carne pode dar de vil--taes eram os themas dos seus versos geniaes, enfiados naquelle dizer extranho.
No fundo, o livro era a sua historia--uma autobiographia.
Expliquei que a unica superioridade que me arrogava sobre o grande numero de confrades era a de acompanhar a propria Belleza que eu n?o sentia.
Tinha uma concep??o de Belleza que prendia ao meu temperamento--era a que naturalmente mais exteriorizava. Mas n?o me era difficil descer ao intimo duma alma exotica, para viver tempestades alheias.
Conversamos at? Guimar?es.
Seguiu os dados que incidentemente lhe forneci, e inquiriu, amavel, da minha orienta??o n?o esclarecida pelo livro que l?ra.
Falamos do debate intellectual do momento. Vieram a proposito velhos cultos.
Cada um de n?s tinha concertado um Ceu para os seus santos--um Ceu de Arte, limitado, que mal encheria duas paginas de Folhinha...
Falei da obra revolucionaria de Dosto?ewsky, D'Annunzio, da cruzada de Anatole, Maeterlinck, Nietzsche, Wilde e outros; confrontei a aspira??o dos recem-cruzados da id?a-nova com o positivismo estreito dos ultimos cincoenta annos.
Que Zola, por exemplo, apont?ra todas as grossarias, os aleij?es do corpo, mas n?o comprehendera os delicados aleij?es da Alma, excessos do sentido; materializ?ra o talento numa causa rude. A sua alma n?o d?ra a express?o duma Arte superior e exacta segundo o espirito.
Assim tambem E?a, entre n?s, negativista e bolandeiro, bizarro e dispersivo: no fundo um homem de letras, com technica extrangeirada, cortada ? fei??o dos seus fraques, segundo os modelos de Paris, terra incaracteristica, cosmopolita, transportada a Portugal em amostras da sua prosa de contrastes, duma rhythmica for?ada.
Por isso o genio de Camillo, mais o de Fialho haviam batido o seu talento relativo, que liquidou numa reduzida memoria, concebida com macula do peccado original de Teixeira Lopes--o doloroso artista.
Que a pelle da gera??o passada--a que vestira o realismo--era uma pelle espessa, escamosa e aspera como a do crocodilo.
A miss?o nova era outra.
O nosso empenho devia ser, parecia-me, archivar todas as descobertas que v?o al?m do commum, tom?-las como factos, fazer da duvida uma for?a, caminhar sobre a id?a conquistada, formular novas theses, acceitar o bem e o mal, a vida creada e latente, tomar os proprios devaneios como factos, pois que a imagina??o ? tambem um facto e primordial, notavel.
Assim, ? Belleza do sentimento succedera na ordem critica, a escola do motivo averiguado. Para n?s,--sentimento, os dados positivos, segundo a escola anterior, toda a elementa??o, creada ou latente, v?o dar a uma escola nova, religiosa, universal, compativel com todas as raz?es e servindo a concep??o da Vida, segundo os processos mais largos e alevantados. Primeiro a Literatura da Belleza, medida a compasso, feita precis?o; a esta seguiu-se uma Arte exclusivamente sentimental; n?s assistimos ao exaggero inverso, que quasi nos deu a nega??o do sentimento. O papel dos escriptores de hoje, apostolava eu--quasi ao findar da viagem--era apagar os preconceitos, aproveitando tudo e partindo da Literatura das id?as e dos factos para a Literatura das imagens, caminhando, confiadamente, sem exclusivismo e sem pressas.
--Sim, ? verdade, confirmou Peregrina, o que perdeu os passados foi pretenderem fazer girar a terra em volta delles.
Theophilo Braga, por exemplo, deixa este mundo com a id?a de que esgotou a especula??o mental; escreveu, supp?e, a ultima palavra da grande synthese poetica e philosophica da Nacionalidade; e a sua morte, parece-lhe, por? ponto na vida de Portugal, enchendo e fechando o Pantheon...
--Guimar?es! gritou o empregado.
Cheg?ramos.
Maria Peregrina, ao despedir-se, insistiu:
--Que fosse a Lares, passar algumas horas ou dias, consoante a minha disposi??o.
E t?o interessadamente o fez que prometti visit?-la, apenas me desobrigasse de Guimar?es.
--Pois veja se tira tempo para mim, e v? com vagar. Se f?r com tempo e na disposi??o de ouvir-me, prometto contar-lhe episodios, que at? agora tenho calado.
E sabe? disse com tristeza, talvez que estes episodios--o romance dos meus erros e amarguras--valham a Historia, que prende ao bandoleirismo dos Affonsos.
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