Read Ebook: Contos e Phantasias by Carvalho Maria Amalia Vaz De
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Ebook has 1807 lines and 55224 words, and 37 pages
CONTOS E PHANTASIAS
D. MARIA AMALIA VAZ DE CARVALHO
CONTOS
PHANTASIAS
LISBOA
PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA
LIVRARIA EDITORA
Rua Augusta--50, 52 e 54
LISBOA
OFFICINAS TYPOGRAPHICA E DE ENCADERNA??O
Movidas a vapor DA Parceria Antonio Maria Pereira
PRIMEIRA PARTE
UMA HISTORIA VERDADEIRA
Era uma physionomia incaracteristica, apagada, tristissima.
N?o se podia dizer a idade que tinha, nem mesmo se tinha idade.
Tanto podia ter trinta ou quarenta como setenta annos.
Curvado pela idade ou pelos desgostos? Encanecido porque os annos tinham corrido por sobre a cabe?a d'elle, ou porque lhe tinham pesado duplamente sobre os hombros debeis?
Quem o podia dizer?
Era uma organisa??o acanhada e rachitica, podia mesmo chamar-se incompleta.
Para elle com certeza que a adolescencia n?o tivera as suas madrugadas azues t?o gorgeadas e t?o festivas, nem a virilidade tivera a fanfarra estridente dos seus clarins, a florescencia escarlate dos seus rosaes voluptuosos.
Tinha sempre vivido debaixo de uma estranha press?o dolorosa.
Depend?ra de todos primeiro porque era fraco e inerme, depois porque f?ra pobre, dependente, sem aquella aspera dignidade que os atrictos da vida tornam mais rude e que ? a armadura moral que salvaguarda o homem nos duros combates sociaes.
Nasceu n'uma casa opulenta que lhe n?o pertencia, cresceu no meio de um luxo de que seus paes er?o parasitas voluntarios e de que elle era... parasita inconsciente.
Come??ra por ter medo de tudo e de todos; um medo que n?o raciocinava, que n?o sabia, que n?o indagava mesmo a sua propria origem.
Nasceu assustadi?o, como certos animaes silvestres, e toda a vida conservou a mesma express?o inquieta e medrosa da lebre perseguida.
E no emtanto ella era bonita, delgada, flexivel, muito branca.
Uma figura ideal de pintor inglez.
Mas que culpa tinha elle, o pequenino parea, se os olhos d'essa graciosa e delicada senhora lhe pareciam frios e metalicos, com umas scintilla??es azuladas como as do a?o fino? se as suas m?os esguias e brancas se lhe affiguravam duas tenazes que podiam apertal-o, apertal-o at? o torcerem todo, at? o esphacelarem e fazerem d'elle, do seu pequeno corpo t?o fraquinho, uma grotesca massa informe, que o mundo inteiro pisasse, onde o mundo inteiro cuspisse!
Seria allucina??o d'aquelle cerebro enfermo e condemnado ?s scismas doentias?
Quem sabe?
O caso ? que o sentia, e que nunca pudera esquivar-se a essa preoccupa??o intensa e dilacerante!
Um d'estes dous entes que dominaram de estranho terror a sua infancia, maltratava-o nas explos?es brutaes de seu temperamento de touro bravo.
O outro--a senhora--muito altiva, muito fria, muito desdenhosa, nem sequer lhe fallava.
Olhava-o ?s vezes como se olha para um animal repugnante, para um sapo, ou para uma carocha, e passava adiante, imperturbavel e olympica.
Havia, por?m, um outro s?r, dos que mais em contacto estavam com elle, que nem o maltratava, nem o desprezava com a glacial frieza do seu desdem.
E comtudo era d'esse que elle tinha ainda mais medo.
Era seu tio; uma figura original, uma physionomia de titan que por um engano qualquer da natureza n?o p?de conseguir passar de an?o.
Seu tio!... Como esta individualidade extraordinariamente accentuada, como este rosto ironico, irregular, convulsionado, dominou para sempre o destino obscuro da infeliz crean?a que eu conheci j? velho!
Seu tio n?o o perseguia nem lhe manifestava uma repugnancia muda, pelo contrario.
Chamava-o continuamente para o p? de si, ensinava-lhe, quando estava s?, palavras, esgares, visagens grotescas que lhe fazia repetir diante de gente, n'um c?ro de gargalhadas asperas e hostis como gumes de espadas!
Vestia-o de um modo desusado e extravagante, vestia-o de marujo, de escossez, com as suas pequenas pernas magras, trigueiras, ossudas, n'uma nudez friorenta que lhe doia, e o fazia tiritar; vestia-o de tyrolez, o que lhe dava um aspecto comico, que arrebentava com riso a criadagem.
?s vezes nos seus dias de melhor humor sahia com elle, que tinha apenas sete annos de idade, de casaca, chap?o-alto, e berloques na cadeia do relogio.
Tinha tempos em que n?o podia passar sem a sua companhia; a crean?a era a unica distrac??o do an?o.
As caricias d'esse homem singular, de olhar faiscante, de cabelladura revolta e electrica, de voz sonora e rica de inflex?es estranhas, do?am, por?m, ao pequeno muito mais do que os desprezos ou os m?os tratos dos outros.
Ao p? d'estes sentia-se perseguido, ao p? d'aquelle sentia-se humilhado.
Um dia o marquez--o tio do pequeno Thadeu era marquez,--achou comico mandar introduzir a crean?a no cofre acharoado que havia junto ao fog?o do gabinete de trabalho, destinado a guardar a lenha ou o carv?o que se consumia.
De minuto em minuto abria-se a tampa e sahia a cara vermelha e congestionada do pequeno, uma cara de animal assustado, o que divertia extraordinariamente as visitas.
Sahiu d'alli com uma febre que o teve um mez entre a morte e a vida, delirante, sem conhecer ninguem, com a m?e debulhada em lagrimas ? cabeceira.
Mas Thadeu n?o gostava de sua m?e.
Era uma creatura t?o debil como elle, pallida como uma defunta, inerme, estupida, sem vontade.
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